O termo em latim pode ser traduzido ao pé da letra por “leitura divina” ou ainda “leitura orante”, aplicado à palavra de Deus. Sua origem não está necessariamente no cristianismo, podemos apontar para uns 2.500 anos a.C, pois a Palavra divina sempre ocupou o centro da fé de nossos irmãos judeus, que nos trouxeram a Bíblia. Por exemplo, o profeta, sacerdote e escriba Esdras leu o livro da Lei de Deus (Toráh) na praça de Jerusalém desde a aurora até o meio dia diante de uma multidão, onde “todo o povo ouvia atentamente” (Nee 8,3) e todos choravam ao ouvir a leitura. Em Josué 1,8 encontramos a exortação para meditá-la dia e noite. Naquela época, a “Bíblia” que eles dispunham era composta pelo Pentateuco (Lei), alguns textos proféticos e outros escritos.
O uso da Bíblia como fonte de espiritualidade foi bem propagado no cristianismo, especialmente através dos monges: Antão, Pacômio, Basílio e Bento. A sistematização que conhecemos foi realizada por Guido (ou Guigo), um monge que viveu no século XII, apresentando os 4 degraus mais conhecidos, que também são os mais importantes: LEITURA, MEDITAÇÃO, ORAÇÃO e CONTEMPLACÃO. Vale lembrar que este não é o único método existente, alguns sugerem outros degraus como eructação (“transbordamento”), ação etc. Mas o que importa são os frutos que essa prática espiritual e mental pode gerar. “Com efeito, nos livros sagrados, o Pai que está nos céus vem amorosamente ao encontro de Seus filhos, a conversar com eles; e é tão grande a força e a virtude da palavra de Deus que se torna o apoio vigoroso da Igreja, solidez da fé para os filhos da Igreja, alimento da alma, fonte pura e perene de vida espiritual” (Constituição Dogmática Dei Verbum, 21).
A LEITURA deve ser paciente, calma e perseverante. Nessa primeira etapa se pergunta: “O que o texto diz?”, respeitando a mensagem do autor. Por isso é sempre bom um estudo à parte, não se preocupando com trechos difíceis (lembre-se que não é momento para estudo). Santo Isidoro (560-636 d.C.), dizia que “quando rezamos, falamos com Deus. Quando lemos a Sagrada Escritura, Deus fala conosco”, então o fato de entender ou não, não é elemento essencial neste momento. A Bíblia, enquanto literatura, é semelhante aos demais livros, você só conhece lendo para, assim, se familiarizar. A intimidade não nasce de uma vez, mas a medida que você se dedica. Lembremos da exortação de São Jerônimo em seu comentário ao livro do Eclesiastes: “cavemos cada sílaba”.
Dica importante: observe atentamente as palavras-chave, palavras que se repetem, lugares, personagens e os verbos. São esses últimos que dão vida e movimento ao texto. Às vezes um texto enorme se concentra em apenas uma palavra ou expressão forte. Uma leitura rápida e desatenta deixa passar muita coisa, por isso é recomendável que se leia o trecho mais de uma vez.
Depois vem a MEDITAÇÃO ou reflexão, onde pergunta-se “o que o texto diz pra mim?”, ou seja, nós nos apropriamos daquela palavra, atualizando-a e tornando-a viva e eficaz (Hb 4,12), é o momento de se confrontar com o texto. Reflexão é reflexo, é o momento em que a Palavra se defronta conosco, onde vai deixando de ser apenas texto e transformando-se numa relação. É admirável o exemplo que temos de sábios e santos com relação à sua intimidade com a Palavra. Conta-se que, quando Santo Antão (251-356 d.C.) lia ou ouvia a Escritura, comportava-se e entendia como se a leitura tivesse sido feita para ele, estava tão atento que nada lhe escapava, retinha tudo, e assim sua memória lhe servia de livro.
Dica importante: reze preferencialmente com a liturgia diária. Quando eu me detenho a ficar apenas no que gosto ou quero, posso estar “manipulando” a mensagem. É bonito se alimentar do que nos oferece a Igreja ou deixar que a Palavra venha até nós. Somos servos Dela, não “donos”.
Em seguida vem a ORAÇÃO, a palavra é transformada em diálogo. Perguntamos “o que o texto me faz dizer a Deus?”, pois a Bíblia é a principal e melhor fonte de oração e espiritualidade segundo o Documento Dei Verbum (DV), que tratou sobre a revelação divina. O que temos nós e a Bíblia em comum são as ansiedades, os prazeres da vida, o sentido da beleza, a consciência de ter se afastado de Deus ou o desejo de reencontrá-lo, são situações que nos fazem se aproximar Dele e nos dirigir com confiança a nosso Senhor e Pai. Assim, a partir do que lemos, é possível falar, mas também ouvir. A oração é tudo o que dispomos para Deus, e é tudo o que Ele precisa para nos fazer divinos nesta relação. Rezar não é somente pedir, mas antes permitir que Ele penetre em nós. É falando e ouvindo a Deus que vamos percebendo que o mesmo não é tão austero ou distante o quanto parece ser.
Dica importante: Não reze qualquer coisa. Reze a partir do que leu. Não é necessariamente o momento para expormos nossas dificuldades da vida (faça isso em um momento de oração pessoal à parte), deixe-se conduzir pela Palavra. Se prestarmos atenção nas orações bíblicas, elas se caracterizam pela ação de graças, louvor e agradecimento, mais do que por pedidos. Mas se pedir, não esqueça de suplicar a Deus sabedoria e entendimento em primeiro lugar.
Por fim, temos a CONTEMPLAÇÃO, que dá no mesmo que adorar a Deus, deixar ser amado e envolvido por esta presença real, é um tipo de oração passiva onde eu me disponho a ouvi-lo ou simplesmente permanecer em sua presença. Eu poderia perguntar “o que Deus me diz?”, mas a maior riqueza não é em si fato de Deus falar; feliz de quem atingiu a maturidade de simplesmente buscar sua presença “porque a palavra está muito perto de ti: está na tua boca e no teu coração, para que a ponhas em prática” (Dt 30,14). Contemplação é também deixar Deus contemplar a melhor obra que criou: o ser humano. E nós a Ele. Contemplar significa estar no templo, e o templo é o lugar onde se adora e invoca a divindade, é mais que um lugar, pode ser uma pessoa viva. Não somos templos de seu Espírito? (Cf. 1Cor 6,19-20). Enfim, a Bíblia não é somente letra, mas “um livro perigoso. Eu dou o dedo, ela quer a mão; eu dou a mão, ela me quer inteiro” (Sören Kierkegaard).
Dica importante: talvez seja a parte mais difícil, pois nossa sociedade e cultura atuais não nos deixam quietos. Contemplação requer silêncio (interior e exterior) e escuta de Deus. Não dê atenção a pensamentos vãos, desordenados e estranhos, prossiga se esforçando e sabendo que oração também é combate, e que a resposta do que procuramos pode residir aqui.
O próprio Jesus nos ensina a fazer Lectio Divina! Seja em um momento específico ou de forma itinerante. Por várias vezes ele é flagrado em oração, em lugares solitários (Mc 6,30), em outras lendo, meditando, ensinando a Lei (Lc 4,15) e pregando a Boa Nova (Lc 4,44). É uma prática que requer certo esforço mental e espiritual, mas que com o tempo vai se tornando algo que já integra nossa vida espiritual e nossa forma de ler e compreender a Bíblia.
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Caso você queira baixar nosso PDF para impressão com um pequeno Manual de Lectio Divina clique aqui. Uma gentileza da Escola de Formação Paroquial Santo Afonso, da Paróquia Nossa Senhora de Lourdes (Goiânia, Brasil) em parceria com a Congregação do Santíssimo Redentor (Província de Brasília) e do Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás (IFITEG). A arte é de nosso colaborador Leandro Pesi.
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