É praticamente impossível visitar um mosteiro, especialmente se da ordem trapista na Europa, e não encontrar um bar ao lado. O motivo não se dá simplesmente por se tratar de uma questão cultural do “velho continente”, como veremos adiante, mas de uma necessidade especial. Dito isso no Brasil, o que não é muito comum no meio clerical e institucional religioso, pelo menos publicamente, pode parecer uma afronta aos nossos “bons costumes”. Mas é preciso contextualizar a questão. No quarto capítulo da Regra de São Bento, esta adotada pelos monges beneditinos, cistercienses e comunidades monásticas com essa inspiração, encontramos o título “Quais são os instrumentos das boas obras”, que apresenta 74 indicações para os monges ou cristãos da chamada “arte espiritual”. A 35ª delas é a orientação “não ser dado ao vinho”.
No capítulo 40, “Da medida da bebida”, orienta-se que o monge evite a embriaguez ou consuma no máximo uma hêmina de vinho ao dia, medida romana que na Idade Média equivale a 7 decilitros (700 ml) e, citando a Escritura, São Bento lembra que “o vinho faz apostatar mesmo os sábios” (Provérbios 20,1; RB 40,7). Essa orientação poderia variar de acordo com a cultura, clima ou realidades de cada lugar. Em épocas ou ambientes frios, o vinho sempre foi uma alternativa para ajudar a dilatar os vasos sanguíneos, permitindo que o sangue circule com melhor fluidez e permita a sensação de aquecimento. Mas o que dizer da cerveja? O que ela tem a ver com os monges? Bem, muitos estudiosos apontam a origem da cerveja para 2.100 a.C. entre o povo sumério, no Egito, onde a cevada cresce abundantemente. Mas foi nos mosteiros que ela adquiriu um “santo sabor”:
Na Idade Média, vários mosteiros fabricavam cerveja, empregando diversas ervas para aromatizá-la, como mírica, rosmarinho, louro, sálvia, gengibre e o lúpulo, este utilizado até hoje e introduzido no processo de fabricação da cerveja entre os anos 700 e 800. O uso de lúpulo para dar o gosto amargo da cerveja e para preservá-la é atribuída aos monges do Mosteiro de San Gallo, na Suíça. Os monges por serem os únicos que reproduziam os manuscritos da época, puderam conservar e aperfeiçoar a técnica de fabricação da cerveja (Site Saint Bier. Acesso em 16 Out. 2020).
Essa tradição foi atravessando gerações entre os religiosos. Não foi diferente para a Ordem Cisterciense da Estrita Observância (sigla O.C.S.O em latim), mais conhecida como “ordem trapista” que, embora seja apenas uma das muitas ordens religiosas a fabricarem cerveja, todo mestre cervejeiro sabe que a “loira trapista” é catalogada à parte das demais, por conter um sabor todo especial, considerada entre as melhores do mundo. Isso se deve pelo preceito de pureza unido à honestidade que a Ordem mantém rigorosamente, o que já é uma de suas características espirituais, uma das mais radicais do cristianismo ocidental em seu estilo de vida. Rica em antioxidante e aliada à prevenção das doenças coronárias e alívio do estresse, a cerveja para os monges não é simplesmente uma bebida.
Já utilizada como remédio e considerada “criatura de Deus”, como dito nos antigos rituais católicos de bênçãos, tem Santo Arnulfo (580-641), monge beneditino e bispo de Metz, França, como padroeiro dos cervejeiros. Isto se deve à sua recomendação do uso da cerveja em um tempo de grande peste em Metz, já que ele sabia que o processo de fermentação da cerveja ajudaria a matar os germes da água, e também por um conhecido milagre após sua morte, onde na procissão funeral em que seu corpo era levado, os fiéis, já cansados, pararam em um determinado lugar para consumir cerveja, mas havia apenas uma garrafa que, para a surpresa de todos, o conteúdo nunca acabava. Como se pode ver, a relação dos monges com a bebida não é recente. Uma “loira trapista” deve atender a vários critérios estritos a fim de se adequar à essa nomenclatura antes de receber o selo:
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A cerveja deve ser fabricada dentro das paredes de um mosteiro trapista, pelos próprios monges/ monjas ou sob sua supervisão;
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A cervejaria deve ser de importância secundária no mosteiro e deve testemunhar as práticas comerciais apropriadas a um estilo de vida monástico;
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A cervejaria não pretende ser um empreendimento com fins lucrativos. A renda cobre as despesas de vida dos monges e a manutenção dos edifícios e jardins. Tudo o que resta é doado à caridade para o serviço social e para ajudar as pessoas necessitadas.
Mas agora gostaria de ser mais específico ainda, e falar da cerveja de um dos mosteiros belgas com o qual sempre mantive contato e que tive a feliz ventura de ser acolhido como hóspede em julho de 2019. Trata-se da Abadia de Orval, localizada na cidade de Florenville, há 180 km de Bruxelas, no sul do país, fronteira com França e Luxemburgo. Fundado no ano de 1070, o mosteiro foi incendiado no século XII e passou por duas destruições, sendo a última durante a Revolução Francesa. Hoje é o mais belo, conhecido e visitado monastério da Bélgica. O motivo maior de minha visita foi o desenvolvimento de um trabalho biográfico sobre o padre belga Gaëtan (Caetano) Minette de Tillesse, ex monge de Orval que ali viveu 22 anos antes de se mudar para o Brasil (1946-1968).
A Cervejaria de Orval está localizada dentro do recinto da Abadia, criada em 1931 para financiar o enorme projeto de reconstrução do mosteiro, que teve início em 1939 sob liderança do abade Dom Albert-Marie Van Der Cruyssen e de alguns monges trapistas franceses que estavam refugiados no Brasil entre 1904 e 1931 na cidade de Tremembé/ SP. Este trabalho da “ressurreição de Orval” durou longos 20 anos, desenvolvido pelo arquiteto Henri Vaes, elevado sobre as bases do antigo mosteiro do século XVIII. Desde o início, a cervejaria teve a mão de obra contratada do senhor Pappenheimer, natural da Baviera, que foi seu primeiro mestre cervejeiro e responsável pela receita. Atualmente, Orval produz 22 milhões de garrafas por ano, sendo que os 85% de sua produção são comercializados em território belga. Se deu água na boca você pode encontrar aqui no Brasil até mesmo pela internet.
Esta cerveja é caracterizada por um elevado e duplo processo de fermentação e um tempo de maturação que lhe conferem sabor complexo e frutado, uma sutil harmonia entre o redondo e o amargo. Desde 1931, o seu sabor incomparável deve-se sobretudo à qualidade da água, do lúpulo e das leveduras. Baseia-se em variedades específicas de lúpulo altamente aromatizadas que estão ligadas ao primeiro mestre cervejeiro de Orval. E o seu método inglês de dry hopping confere-lhe uma diversidade de aromas, mantendo o seu nível de amargor. As suas diferentes fases de fermentação – fermentação combinada, com a levedura original e com a fermentação selvagem, seguida da refermentação em garrafa – requerem um longo tempo de maturação e inúmeros controles de qualidade. De cor alaranjada e encorpada, seu teor alcoólico é de 8,2%.
E para finalizar, como se encontra brasileiro em qualquer parte do mundo… Durante nossa visita, o ambiente de silêncio monástico foi interrompido (excepcionalmente!) quando o monge hoteleiro, Padre Bernard-Joseph, nos informou que havia uma brasileira ali trabalhando como cozinheira e costureira do mosteiro: Marinalva, natural de Recife/ PE, casada com o Sr. Ghislain, um dos funcionários da cervejaria. Para nós foi motivo e ocasião de grande festa! Padre Lode van Hecke, então abade, foi nomeado pelo Papa Francisco o novo bispo da diocese belga de Gand, empossado em fevereiro de 2020, o que é atividade rara para a vida de um monge trapista. No último 1º de outubro, Padre Bernard-Joseph foi nomeado superior de Orval, enquanto se aguarda eleição de um novo abade, o que comumente se constitui um processo demorado entre os cistercienses. Os monges de Orval são considerados os anjos ou guardiões de sua cerveja.