Quem é nordestino e nunca pediu a bênção a seu pai, mãe, parente próximo, a um padre ou até mesmo às pessoas “mais velhas”, em alguns casos, parece ter conhecido algum desencontro com a origem de sua cultura. E nem precisa ser uma pessoa religiosa para tal. Isso se deve ao profundo entrelaçamento da cultura brasileira com o cristianismo português que herdamos há mais de 500 anos, desde a colonização europeia. Além de uma questão religiosa ou cultural, pode haver uma dimensão teológica e afetiva por trás de tal gesto.
Uma vez escutei da irmã Margaret Rachel Desiré Malfliet, religiosa belga que há muitos anos vive em Crateús, sertão do Ceará, a seguinte afirmação enquanto nos pregava um retiro: “Aqui no nosso Nordeste, dar ou receber a bênção também expressa o bem querer”. De fato, até mesmo pessoas “não religiosas” em nossa cultura, podem achar esse gesto muito comum em seu convívio. Achei muito interessante essa percepção por se tratar da perspectiva de uma mulher, teóloga e “estrangeira”, detalhe que talvez possa nos passar despercebido. Em nosso Nordeste, esse gesto é cercado de significados e tem por finalidade dar sentido divino às nossas ações cotidianas, é muito comum se repetir ao dormir, acordar, sair ou chegar em casa, (re)encontrar pai, mãe, avós, tios, padrinho/madrinha, um padre ou, em alguns casos, outras pessoas idosas.
A palavra bênção deriva de “bem”, que pode designar tanto a expressão da bondade como o próprio Deus: “A fonte e origem de toda a bênção é Deus bendito sobre todas as coisas que, como único e sumo bem, tudo fez bem feito, para encher de bênçãos as suas criaturas e, mesmo depois da queda do homem, continua a derramar essas bênçãos, como sinal da sua misericórdia” (Ritual de Bênçãos. Preliminares Gerais, 1). No Dicionário Aurélio da língua portuguesa é “ação de benzer, de abençoar, de invocar a graça divina sobre”. Para o cristianismo, Jesus é a bênção de Deus por excelência e fonte de todas elas (cf. Gl 4, 4; Ef 1, 3), aquele que por sua vida, paixão e morte, destruiu toda e qualquer maldição.
Em alguns casos, a expressão também pode significar acordo. Quando alguém consulta a opinião de pessoa próxima, em especial aos pais, e escuta “você tem minha bênção”, sente um profundo alívio, mas se ouve o contrário, um conflito pode se estabelecer. De igual modo, pode se tratar de um grande elogio: “tal pessoa é uma bênção em minha vida”; de uma graça (desejo) especial: “que Deus me abençoe com um emprego ou com uma casa própria”. Mas também pode ser utilizada como ironia a alguém problemático: “fulano é uma bênção!” (para não dizer o contrário do Salmo 127,3-5, onde os filhos são descritos como “a bênção do Senhor”). No cristianismo também designa um ritual se dentro da liturgia: bênção de uma criança, de alimentos, de um automóvel, de uma residência, de uma plantação, de uma imagem religiosa, e assim por diante.
Na verdade, essa prática é mais antiga do que se imagina. No mundo bíblico, a bênção (em hebraico ברכה brachá ou berakhá, no plural ברכות brachot) significa a invocação da presença de Deus sobre pessoas, coisas ou eventos. Quando se abençoa algo, pede-se a permissão de Deus para estar em contato com aquilo que a Ele pertence, portanto, é um reconhecimento de que nada é nosso. Como vimos, a bênção também pode significar recompensa, esse é o significado do nome do profeta “Baruque” (ou Baruc), amigo e secretário do profeta Jeremias. Não podemos esquecer que, no Brasil, os judeus encontraram em nosso perfil amistoso uma referência de acolhimento frente a muitos movimentos antissemitas espalhados pelo mundo (como na vizinha Argentina), e muitos brasileiros são descendentes do povo judaico, que imigraram com grande expressão a partir do início do século passado devido à expansão do movimento nazista. A bênção não nos é estranha!
Deus disse a Abraão: “Farei de ti uma grande nação; eu te abençoarei e exaltarei o teu nome, e tu serás uma fonte de bênçãos. Abençoarei aqueles que te abençoarem, e amaldiçoarei aqueles que te amaldiçoarem; todas as famílias da terra serão benditas em ti” (Gn 12,2-3). O povo de Deus é o povo da bênção e da promessa divina. Caso muito conhecido é a famosa “Bênção de Aarão”, sacerdote irmão de Moisés, que se tornou uma fórmula, também adotada por São Francisco de Assis, dedicada a seu querido Frei Leão. É possível encontrar em seus termos a relação de proximidade de Deus com o povo, seu carinho e proteção:
“Dize a Aarão e seus filhos o seguinte: Eis como abençoareis os filhos de Israel: “O Senhor te abençoe e te guarde! O Senhor te mostre a sua face e conceda-te sua graça! O Senhor volva o seu rosto para ti e te dê a paz!” E assim invocarão o meu nome sobre os filhos de Israel e eu os abençoarei” (Nm 6,23-27). Esta mesma bênção foi “recuperada” pela liturgia pós-concílio Vaticano II, presente no Missal Romano, sendo uma das bênçãos que pode ser aplicada diariamente.
Portanto, ao invocar, abençoar ou pedir uma bênção, muito além do que uma expressão de carinho está a mão de Deus que abençoa, protege, santifica, recompensa, cura, consola. Jesus abençoava seu povo, especialmente os mais humildes, mostrando-se um verdadeiro sacerdote do Altíssimo (cf. At 3,26; Mc 10,16; 6,41; Lc 24,50 etc.). É fácil notar como as orações cristãs se expressam em formas de pedidos ou súplicas, enquanto as as judaicas em louvores e ações de graças, sendo as duas formas válidas e relacionadas entre si, ilustrando a vida do fiel com Deus e sua presença nos simples acontecimentos do dia a dia ou em seus momentos decisivos. Em Deuteronômio 28 encontramos uma lista de bênçãos para aqueles que ouvirem a Deus e uma outra lista para aqueles que desobedecem sua voz, mostrando assim sua essencial necessidade, seu papel na história da salvação e na vida do fiel.
Para concluir, gostaria de trazer um pequeno testemunho de alguns seminaristas da Comunidade Católica Shalom que tem missões na Itália, com quem tive a oportunidade de estudar filosofia (2011-2013) e teologia (2016-2019) em Fortaleza. Como esta comunidade é genuinamente cearense, muitos de seus membros são filhos do Nordeste, com cultura fortemente enraizada, e o gesto de pedir a bênção a um padre entre nós é automático. Certa vez, um seminarista recém-chegado na Itália, encontrou um padre italiano. Imediata e devotamente pegou suas mãos e disse-lhe: “Sua bênção, padre!”. Não se tratando de um padre brasileiro, esse imediatamente pegou um livro com o ritual, água benta e fez toda a cerimônia (risos). Bênção tem em todo lugar do universo, mas a “bença” é nossa.
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