Tenho a grata alegria e responsabilidade de ser contado entre os poucos pesquisadores brasileiros do pensamento do filósofo e teólogo Abraham Joshua Heschel (1907-1972). Tudo começou com um pequeno grupo de estudos coordenado pela professora Aíla Luzia Pinheiro de Andrade na Faculdade Católica de Fortaleza (FCF), quando eu ainda estava cursando Filosofia em 2012. O grupo se chamava “Consciência religiosa e condição humana em Abraham Heschel: diálogo interdisciplinar”. Nem a professora e nem a gente imaginávamos que esse pequeno e tímido gesto pudesse germinar em grandes colheitas.
O grupinho tinha mais ou menos 8 integrantes e nos reuníamos nas segundas-feiras no último horário, de 11 às 12 horas da manhã. O tempo era escasso e a dificuldade de conciliar o horário de todos não ajudava. Mas lá estávamos, embora cansados do dia, na sala dos professores. Bastou a primeira apresentação da professora Aíla para que ficássemos impactados em saber da existência de Heschel, e mais ainda nos perguntávamos do porquê dele não ser mais conhecido no Brasil. Éramos religiosos e seminaristas em maioria, logo percebemos o impacto e importância do pensamento hescheliano para as relações judaico-cristãs no espírito do Concílio Vaticano II e outras atividades humanistas desse pensador.
Ninguém na Faculdade dizia ter ouvido falar em Abraham Heschel, salvo um artigo que foi publicado na revista Kairós por Antonio Thadeo Xavier: “Israel, eco de eternidade” (Kairós, v. 2, n. 2, 2005). Mas o artigo permanecia ali, escondido entre as folhas e disponível na internet, lido talvez por alguns poucos. O nome do autor ainda parecia-nos um trava-língua. Alguns ainda confundiam sua filosofia com teologia, com quase dois anos de encontros, obtivemos uma declaração de apenas 6h/ aula para constar em nossas atividades complementares, arquivo que trago até hoje impresso como recordação.
Mas o encanto foi tamanho que, ao final de nosso curso, tivemos três trabalhos monográficos no pensamento de Heschel, todos da minha turma. Em primeiro lugar, nosso amigo Emivaldo Silva Nogueira, à época religioso orionita, que se encantou pela temática “O conceito de Autodiscernimento em Abraham Joshua Heschel”, orientado pela professora Aíla. Em segundo o hoje padre Claudenir Maia, da Arquidiocese de Fortaleza, à época seminarista, que sob orientação da mesma professora, decidiu desenvolver seus trabalhos monográficos em filosofia (2013) e teologia (2017) no pensamento hescheliano. Por fim, minha filosofia (2013) foi concluída com o tema “O pensamento situacional na obra ‘Deus em busca do Homem’ em diálogo com a razão moderna”, orientado pelo professor Judikael Castelo Branco, e minha teologia (2019) com “O mundo interior dos profetas Bíblicos e a vocação do Homemem A. J. Heschel”, sob orientação da professora Aíla, monografia que mais tarde foi transformada em livro como “O mundo interior dos profetas bíblicos: vocação, paixão e ação” (Ed. Brazil Publishing, 2021).
E não parou por aí… Com incentivos da professora Aíla nosso amigo Emivaldo foi enviado a um mestrado em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de Goiás em 2015, trabalhando “O Conceito de autodiscernimento, à luz dos profetas bíblicos, em confronto com a modernidade: uma visão religiosa em Abraham Joshua Heschel”, orientado pelo competente biblista Valmor da Silva. Em sequência, doutorado na mesma instituição e orientação com o tema “A justiça social no profeta Amós à luz do método de autodiscernimento em Abraham Joshua Heschel” (2017-2020) em intercâmbio no Doutorado Sanduíche com a Pontifícia Universidad Católica de Chile (2018-2019).
Na última semana de agosto de 2022 tive a honra de estar em São Paulo em uma sequência de eventos onde Susannah Heschel, filha única e biógrafa de seu pai, Abraham Heschel, veio de Hanover (EUA) para divulgação do pensamento desse grande pensador e humanista, em parceria com a Comunidade Shalom (Sinagoga Masorti). Além da Comunidade Shalom, Susannah ministrou conferências na PUC São Paulo, em parceria com o grupo de pesquisa PUC Labô, Universidade de São Paulo e Igreja Batista da Água Branca (IBAB). Em uma oportunidade tivemos um rápido e frutuoso diálogo. Para assistir, clique aqui.
Aos 15 de fevereiro de 2023 defendi minha dissertação de mestrado em Ciências da Religião na PUC Goiás com o tema: “A experiência religiosa dos profetas bíblicos em Abraham Heschel e sua crítica à visão panpsicológica”, orientada pelo professor Valmor da Silva, e contando na banca com as professoras Aíla Andrade e Rosemary Silva. Em 23 de dezembro de 2022 comemorou-se os 50 anos de falecimento de Abraham Heschel e pretendemos ainda nesse ano iniciar um grupo de estudos na PUC Goiás e realizar um evento comemorativo para que essa riqueza seja mais conhecida e explorada em solo brasileiro.
Lembrem-se que há um sentido além do absurdo. Tenham a certeza de que cada ação conta, por menor que seja, que cada palavra tem seu poder, e que cada um de nós pode contribuir para a redenção do mundo, apesar de todo absurdo e de todas as frustrações e de todas as decepções. E, acima de tudo, lembrem que o sentido da vida é construir a vida como se fosse uma obra de arte (Abraham Heschel em entrevista televisiva a Carl Stern, 1972 In: “O último dos profetas”. São Paulo: Comunidade Shalom, 2021, p. 113).
Narcélio Ferreira de Lima