Toda e qualquer pessoa batizada participa do tríplice múnus de Cristo, isto é, uma vez mergulhada na vida da Trindade pelas águas do batismo, torna-se continuadora de sua mesma missão na terra. Sendo que o próprio Cristo vai ainda mais longe: “aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas” (Jo 19,12). Essa realidade não está inteiramente associada à ideia de uma instituição ou a uma elite particular, como aconteceu com os Levitas (Dt 33,8), tribo designada especificamente para funções litúrgicas, mas também denota uma dimensão espiritual, uma realidade transcendente e uma promessa descrita já no Antigo Testamento que abrange todo o povo de Deus: “vós me sereis um reino de sacerdotes e uma nação consagrada” (Êx 19,6). É por isso que a missão sacerdotal está intimamente ligada ao múnus de santificar da Igreja.
A palavra sacerdote vem do grego: sacer (sagrado) e dos (dom), é aquele que possui o dom sagrado. Todas as religiões e civilizações mais antigas conhecem figuras de lideranças espirituais/religiosas que, muitas vezes, assumiam não apenas funções rituais, mas também de juízes, médicos, reis etc. Em alguns lugares eram, inclusive, vistos como médiuns ou incorporações de divindades, pessoas que possuíam uma visão e iluminação especial. No Antigo Testamento, os sacerdotes assumiam verdadeiro papel de intercessores, pois situavam-se numa posição especial entre Deus e o povo, sempre ligados à santidade de Deus e ao culto, por isso, separados e distintos do cotidiano comum dos demais contemporâneos.
No Egito, Assíria e Fenícia, os reis muitas vezes possuíam autoridade sacerdotal e atuavam como sacerdotes, havia confusão de poderes. Em Roma, por exemplo, os governantes eram também considerados sacerdotes (pontifex maximus), daí o termo pontífice (“ponte”). Mas na Bíblia, há clara distinção, embora ocorram raros incidentes. O emblemático Melquisedec era rei de Salém e, ao mesmo tempo, sacerdote de El-Elion (Gn 14,18). A unção sacerdotal era designada por Deus e uma herança da tribo de Levi (Dt 33,8), o sacerdote era um símbolo das esperanças do povo em suas relações com Deus. Quando o rei Ozias tentou arrogar-se de prerrogativas sacerdotais, foi imediatamente advertido pelo sacerdote Azarias e mais oitenta deles:
Não compete a ti, Ozias, queimar incenso ao Senhor, mas aos sacerdotes da estirpe de Aarão, que foram consagrados para esse fim. Sai do santuário, porque prevaricaste e isso não será para ti honra diante do Senhor Deus (2Cr 26,18. Ver também 1 Rs 12,33 e Am 7,12-13).
O sacerdote não é apenas um sacerdote, é um filho, servo e representante imediato de seu povo, por isso deve ser perito em espiritualidade e humanidade (Hb 5,1), é antes de tudo um pregador “porque os lábios do sacerdote guardam a ciência e é de sua boca que se espera a doutrina, pois ele é o mensageiro do Senhor dos exércitos” (Ml 2,7). Na primeira carta de São Pedro o povo de Deus é designado como “uma raça escolhida, um sacerdócio régio, uma nação santa, um povo adquirido para Deus” (1Pd 2,9). Se o sacerdócio bíblico está entrelaçado à ideia de santidade, é importante não esquecer que o ser humano é a única entidade na qual esta santidade está, de fato, associada e que, biblicamente falando, santo quer dizer “separado”, “designado”, antes que “perfeito”, já que este último atributo deve ser remetido somente a Deus (1Sm 2,2).
No Novo Testamento, em lugar algum os apóstolos são identificados como sacerdotes (instituídos), nem mesmo o próprio Cristo. É importante saber que o sacerdócio de Jesus descrito na carta aos Hebreus é mencionado de forma teológica e não institucional, porque Jesus não pertencia à tribo de Levi. Mesmo assim, é enfática em atribuir esse título somente a Cristo, como o único, santo, sumo, suficiente e eterno sacerdote da nova e eterna Aliança (ver também a Encíclica Pastores dabo Vobis, de João Paulo II, 1992). Nos Evangelhos, Jesus é identificado e assumido mais como um rabi (mestre). Isto não exclui, em momento algum, aquela característica fundamental do povo de Deus que já mencionamos anteriormente, mas apenas distingue duas realidades diferentes, isto é, falar de sacerdotes na Igreja de Cristo (sacerdócio ministerial) ou de sua missão ou vocação sacerdotal (sacerdócio batismal).
No Novo Testamento, é mais comum na comunidade primitiva seus pastores serem identificados como presbíteros, que quer dizer, “anciãos”, pois às pessoas mais experimentadas eram confiadas as primeiras comunidades (Tt 1,7; Tg 5,14; 1Tm 4,14; 1Pd 5,1-3). Portanto, não é necessário levantar uma confusão entre o papel dos padres e fiéis (leigos) na Igreja, há uma distinção clara entre dois tipos de sacerdócio, o ministerial e o comum, é exatamente sobre este último que estamos abordando. Vejamos o que a Igreja Católica diz sobre o sacerdócio comum de todos os fiéis:
Toda a comunidade dos crentes, como tal, é uma comunidade sacerdotal. Os fiéis exercem o seu sacerdócio batismal através da participação, cada qual segundo a sua vocação própria, na missão de Cristo, sacerdote, profeta e rei. É pelos sacramentos do Batismo e da Confirmação que os fiéis são “consagrados para serem […] um sacerdócio santo (Catecismo, §1546)
Do mesmo modo, inúmeros textos eclesiais associam e identificam as mesmas funções sacerdotais do povo, embora de maneira distinta dos pastores instituídos. Tanto as águas do batismo quanto a unção crismal sinalizam e conferem ao fiel cristão uma função especial. Adorar e louvar o Nome de Deus não deve ser atividade jogada à responsabilidade dos sacerdotes, pois cada um deve santificar o mundo, ser sal e luz com sua vocação e carisma específicos. Isto faz lembrar de Davi e seus companheiros, que certa vez “se fez” de sacerdote, referência citada pelo próprio Jesus, lembrando de “como entrou na casa de Deus, e comeram os pães da Presença [propiciação], os quais a lei não lhes permitia comer, nem a ele nem aos que com ele estavam, mas exclusivamente aos sacerdotes” (Mt 12,4). Assim,
Cristo Nosso Senhor, Pontífice escolhido de entre os homens (cf. Hb 5, 1-5), fez do novo povo um «reino sacerdotal para seu Deus e Pai» (Ap. 1,6; 5, 9-10). Na verdade, os batizados, pela regeneração e pela unção do Espírito Santo, são consagrados para serem casa espiritual, sacerdócio santo, para que, por meio de todas as obras próprias do cristão, ofereçam oblações espirituais e anunciem os louvores daquele que das trevas os chamou à sua admirável luz (cf. 1 Pd 2, 4-10). Por isso, todos os discípulos de Cristo, perseverando na oração e louvando a Deus (cf. At 2, 42-47), ofereçam-se a si mesmos como hóstias vivas, santas, agradáveis a Deus (cf. Rm 12,1), deem testemunho de Cristo em toda a parte e àqueles que lha pedirem deem razão da esperança da vida eterna que neles habita (cf. 1 Pd 3,15) (LG 10).
O documento do Concílio Vaticano II que tratou sobre a própria Igreja é um dos mais importantes. A Lumen Gentium, em português, “a luz dos povos”, trouxe-nos uma grande novidade no que se refere à organização interna da hierarquia católica, já que antes, o clero sempre e imediatamente era mencionado em demasiada primazia. Em primeiro lugar, tratou sobre o mistério da Igreja (1), sobre Povo de Deus (2), e só então abordou a hierarquia como tal. Isso pode parecer mera literatura, mas para qualquer leitor, teólogo ou historiador atento, pode ser um grande salto. Hoje fala-se na “hora do leigo”, como se não precisássemos mais dos presbíteros, porém, essa não é a ideia do Concílio, mas sim da redescoberta de um protagonismo mais ativo, consciente e participativo do povo. Para aprofundar a temática sugerimos a leitura de “Ovelha ou Protagonista?”, de Renold J. Blank (Paulus Editora). Mas antes, voltemos à Lumen Gentium:
O sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, embora se diferenciem essencialmente e não apenas em grau, ordenam-se mutuamente um ao outro; pois um e outro participam, a seu modo, do único sacerdócio de Cristo. Com efeito, o sacerdote ministerial, pelo seu poder sagrado, forma e conduz o povo sacerdotal, realiza o sacrifício eucarístico fazendo as vezes de Cristo e oferece-o a Deus em nome de todo o povo; os fiéis, por sua parte, concorrem para a oblação da Eucaristia em virtude do seu sacerdócio real, que eles exercem na recepção dos sacramentos, na oração e ação de graças, no testemunho da santidade de vida, na abnegação e na caridade operosa (LG 10).
Quando Israel não era um reino, sua liderança foi assumida cerca de 410 anos pelos “juízes”, pessoas leigas e carismáticas que tinham a inspiração e dinâmica de conduzir o povo enquanto esse povo formava um status político como seus circunvizinhos. Assim como no Antigo Testamento, Davi, um “leigo”, é flagrado exercendo funções sacerdotais ao comer dos pães consagrados (1Sm 21,6); seu amigo rei Saul também é pego em transe profético: “Mas, no caminho para Naiot, assaltou-o também o espírito de Deus e Saul foi tomado de transes por todo o caminho até chegar a Naiot. Despiu suas vestes, profetizando diante de Samuel e ficou assim despido, prostrado por terra durante todo o dia e toda a noite. Daí o ditado: “Está Saul também entre os profetas?” (1Sm 19,23-24). Moisés uma vez disse ao profeta Josué: “Prouvera a Deus que todo o povo do Senhor profetizasse, e que o Senhor lhe desse o seu espírito!” (Nm 11,29).
No tocante aos textos antigos e paulinos, sobretudo em Romanos 16,1-16, é incontestável a importância e presença das mulheres na liderança cristã, como a da diaconisa Febe de Corinto, Priscila, Trifena, Trifosa, Pérside, Maria e Júlia, a apóstola Júnia, todas mencionadas e honradas pelo apóstolo Paulo, não menos dignas que os distintos homens que desempenhavam altas funções comunitárias, pois não se tratava de subordinação, mas de igualdade e espírito colegial no serviço a Deus e ao próximo. Santa Praxede (séc. I), leiga e mártir, citada como descendente de Priscila, Prudente e Timóteo (Rm 16,3; 2Tm 4,21), assumiu liderança diaconal, missionária e apostólica na Roma Antiga. Numa época de grande perseguição e martírio sob o Imperador Nero (54-68 d.C.), juntamente com sua família, era encarregada de dar digna sepultura aos cristãos, ante às formas mais cruéis adotadas pelas autoridades romanas, assim como assistir aos pobres, necessitados e peregrinos.
Não queremos aqui – novamente o frisamos – clericalizar os leigos e leigas ou secularizar o clero, mas redescobrir aquela espiritualidade essencial de toda vida cristã, ou seja, a santidade que a vocação batismal deve proporcionar a cada filho de Deus consagrado uma vez por todas pelo batismo, que é a principal e a mais importante de todas as consagrações, onde todas as demais estão em função dela. O próprio Jesus não conheceu outro meio mais infalível de salvar a humanidade, como expressou em sua oração pela unidade: “Santifico-me por eles para que também eles sejam santificados pela verdade” (Jo 17,19). Santa Teresinha gostaria até de ser sacerdote para celebrar com muito amor a Eucaristia, e para ser missionária pelo mundo a fora. Conformou-se em não ser padre vendo a atitude de São Francisco de Assis que não se considerou digno de ser ordenado.
É bonito ver que na liturgia católica, quando a assembleia reza respondendo “Receba o Senhor por tuas mãos esse sacrifício”, ela reconhece a função que é própria do ministro ordenado naquele momento, que é consagrar o pão e o vinho. Quando o acólito ou coroinha incensa no ofertório o(s) ministro(s) ordenado(s) no presbitério, logo em seguida vai incensar a assembleia porque o povo de Deus também é sacerdotal. O Padre Gaëtan (Caetano) Minette de Tillesse tinha costume de abrir bem os braços para os lados com a hóstia magna e o cálice nas mãos ao dizer o “Por Cristo, com Cristo e em Cristo…” olhando para os fieis. Quando interrogado do porquê do gesto, dizia que toda a assembleia participa da oração de consagração e que o Padre não atua sozinho no ato.
Para finalizar, seria bom perguntarmos por que o dia do(a) leigo(a) coincide com a Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, sempre no último domingo do Tempo Comum e fechamento do Ano Litúrgico. Exatamente para lembrar aos fiéis de sua missão real, sacerdotal e profética, para sentirem-se responsáveis pela construção do reinado de Cristo no mundo segundo os critérios do Evangelho, juntamente com seus pastores, sem confusão de papéis, sem partidarismos, pois onde Cristo realmente reina, só há espaço para a “justiça, paz e gozo no Espírito Santo” (Rm 14,17).
This is very interesting, You’re a very skilled blogger. I’ve joined your feed and look forward to seeking more of your fantastic post. Also, I have shared your web site in my social networks!