A espiritualidade de São José

O Papa Francisco instituiu um ano inteiro dedicado à celebração da memória do pai adotivo de Jesus, que iniciou no final de 2020, a coincidir seu início e fechamento com a solenidade da Imaculada Conceição de Nossa Senhora (8 de dezembro). No entanto, o  beato Papa Pio IX já havia declarado São José como patrono universal da Igreja em 8 de dezembro de 1870 através do decreto Quemadmodum Deus (“Como Deus”, em português). Mas o que teria levado o atual Pontífice a remeter a figura do Bom José 150 anos depois? Por trás de cada homem e mulher de Deus existe uma vocação específica, uma graça particular, ou mesmo uma espiritualidade, que também é revelação de Deus ao mundo a partir de suas palavras e obras.

O silêncio josefino. Pouco se sabe sobre a vida desta importante e discreta figura, pois para surpresa de alguns, embora Maria seja mencionada como a mulher (ou virgem) do silêncio (Lc 2,19), em todo o Novo Testamento não encontramos uma sequer palavra de seu esposo. Como se sabe, não é do interesse dos personagens bíblicos falarem de si, mas revelar aos homens e mulheres o plano divino da salvação, a face justa e misericordiosa de Deus, portanto, seus dados biográficos vão se tornando cada vez mais escassos, restando-nos apenas intuições a partir de algumas palavras ou menções registradas na Sagrada Escritura ou Tradição. O pouco que sabemos é que ele viveu na transição para o início do primeiro século da era cristã devido à raras menções em trechos do Novo Testamento, como veremos adiante. Na espiritualidade bíblica, silêncio pode ser sinônimo de escuta, obediência e fé, fazendo-nos recordar a fidelidade de Abraão (Gn 12), onde Deus vai revelando suas vontades e a pessoa prontamente executando.

Etimologia e significado do nome. Biblicamente falando, os nomes próprios indicam a missão, identidade ou personalidade da pessoa. Em hebraico, “José” escreve-se (יוֹסֵף) Yosef, que significa “Deus acrescenta”, pois a forma Yo ou Ya trata-se de uma abreviação do Nome Divino Yahweh (Javé, em português), e a junção ao verbo sif= somar, adicionar, acrescentar. Deus é aquele que nada nos tira, que sempre nos dá tudo. José traz em seu nome a benevolência divina, fruto de sua liberalidade e providência. No Antigo Testamento, esse nome é famoso devido a grande figura que foi José do Egito (Gn 37 – 50), cuja história vai desenrolando sem revelação imediata de Deus, diferente de como ocorria em outras famosas histórias do livro de Gênesis, mas onde a providência divina pôde brincar com os cálculos humanos e tirar um bem maior da maldade feita aos seus.

O sonho de José (Painel da Capela da PUC Goiás)

Um profeta de sonhos. Uma outra familiaridade de José do Egito com o pai adotivo de Jesus  é a comunicação e intervenção divina através dos sonhos. O José do Antigo Testamento tinha o dom de interpretá-los (Gn 41), enquanto que o do Novo é alvo deles (Mt 1,20) e de seu discernimento. Os sonhos não estão exclusos da experiência religiosa! Na Bíblia, eles podem ser considerados de caráter divino e profético, pois nada mais são que um tipo de comunicação simplificada entre Deus e seus amigos: “Se há entre vós um profeta, é em visão que eu me revelo a ele, é em sonho que eu lhe falo” (Nm 12,6). O profeta Joel mostrava o desejo de Deus em estender seu espírito a todo o povo: “Vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos anciões terão sonhos, vossos jovens terão visões” (Jl 3,1). O ideal seria que todo o povo de Deus profetizasse (Nm 11,29). Ao mesmo tempo, a Bíblia apela por prudência e registra clara advertência para com os falsos profetas e intérpretes de sonhos (Dt 12,1-6; Jr 23,28-32; Zc 10,2). Outros exemplos conhecidos de intervenção divina a partir dos sonhos são os casos de Abimelec (Gn 20,3), Jacó (Gn 31,10-11), José do Egito (Gn 41), Salomão (1Rs 3,5-15) etc. Moisés, que tinha uma grande intimidade com Deus, obteve a graça de se comunicar com Deus “face a face” (Nm 12,7-8), enquanto que José de Nazaré teve Deus em seus braços! Foi também através de sonho que Deus lhe ordenou a fuga para o Egito (Mt 2,13).

Pobre e nobre. Na Bíblia, todo trabalho manual era símbolo de pobreza e simplicidade. O texto grego diz que José era um tektón (τέκτων), que tanto pode ser traduzido por carpinteiro, artesão, canteiro ou até trabalhador da construção civil. José seria um carpinteiro ou operário de Nazaré, segundo a tradução da Vulgata e dos Padres da Igreja, mas que ao mesmo tempo escondia uma riqueza espiritual sem igual. É importante recordar que não foi Maria que garantiu a ascendência messiânica e davídica a Jesus, pois “Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus chamado Cristo” (Mt 1,16), para se cumprir a profecia que dizia “Um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará de suas raízes. Sobre ele repousará o espírito do Senhor” (Is 11,1-2) após 42 gerações (Mt 1,17). Jessé era o pai de Davi (1Sm 16,1-2; Rt 4,22) e antepassado de todos os reis de Judá, portanto, José é seu ascendente imediato, conforme a genealogia registrada pelo Evangelho de Mateus. Se Jesus pôde ser aclamado como “filho de Davi” ou de Abraão (Mt 1,1), deve-se ao fato de São José pertencer a uma nobre linhagem.

O justo José. A característica mais marcante de José no Novo Testamento é o título bíblico de “justo” (Mt 1,19), um dos mais altos elogios que alguém poderia obter. A justificação no mundo judaico não é uma ação meramente humana, fruto de um esforço próprio, mas antes ato do próprio Deus, que torna reto e piedoso o homem de fé que o teme. Essa justiça de José, no referido caso de Mateus 1,19 é misteriosa. Podemos imaginar que ele, conhecendo a integridade de Maria, não queria lhe entregar ao processo jurídico prescrito na lei judaica por acusação de adultério, o que poderia levá-la à lapidação pública, conforme indicação do livro de Deuteronômio 22,9. Ele fica aqui “entre a cruz e a espada”. Por um lado, não queria acobertar uma criança ignorada por um suposto “pai” anônimo e, por outro, sentiu compaixão de Maria que, embora apenas prometida em casamento, a tradição judaica já entendia tal vínculo como “marido e mulher”. Por fim, José também não quis se valer do ordálio prescrito em Números 5,11-31 (“a oferta pelo ciúme do marido”), uma oblação comemorativa que traz à memória um pecado conjugal da mulher, situação onde as provas materiais para um julgamento mostravam-se deficientes para acusação. José estava diante de um mistério que ele não compreendia, até que um “anjo do Senhor” interveio em sonho e lhe explica todo o plano divino na gravidez de Maria. A expressão “anjo do Senhor” no Antigo Testamento se tratava de uma revelação do próprio Deus (Gn 16,7), embora haja distinções no Novo Testamento em se tratar de um “mensageiro do Senhor”. O que importa é que José foi alvo de uma graça particular, de uma teofania, ou melhor, de muitas delas.

Um homem de ação. Assim como José do Egito teve que se movimentar para salvar seu povo dos sete anos de fome, José despertou daquele sono de revelação e imediatamente agiu conforme o “Anjo do Senhor” o havia indicado, recebendo Maria em sua casa como legítima esposa (Mt 1,24) e, diante da perseguição de Herodes, fugiu com ela e o Menino Jesus para o Egito (Mt 1,13-15). Foi José que nomeou seu filho de “Jesus” (Mt 1,25), em hebraico Yeshua (יֵשׁוּעַ), que significa “Deus salva”. Era muito comum nas famílias judaicas escolher nomes de antepassados ou grandes heróis de seu povo para os filhos e filhas. No caso de Jesus, seu nome se escreve e tem a mesma forma que Josué, aquele que lutou em Jericó e introduziu o povo de Deus na Terra prometida (Js 1; 6). O silêncio de José não é mera passividade, mas oração e ação, é escuta de Deus e combate espiritual. Atento à voz divina, em sonho Deus lhe alerta: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito. Fica lá até que eu te avise, porque Herodes procurará matar o menino” (Mt 2,13). Para José, ouvir é o mesmo que obedecer.

Castíssimo esposo. O texto de Mateus afirma que José “não a conheceu até o dia em que deu ela à luz um filho” (Mt 1,25). O verbo “conhecer” no hebraico tem vários significados. Embora todo o Novo Testamento tenha sido escrito em grego, a mentalidade e cultura da Bíblia é semita, baseada sobretudo na Toráh. Em hebraico esse verbo é daat (דַּעַת), que significa opinião, visão, inteligência, anúncio, ciência, experiência etc. Isso acontece porque José e Maria eram, até então, prometidos em casamento. Além do mais, as referências dos Evangelhos não consideram o período ulterior da vida conjugal deles. Uma leitura fundamentalista desse texto poderia comprometer o conceito da virgindade perpétua de Maria, mas em um olhar atento aos textos que mencionam os “irmãos de Jesus” (Mt 12,46; Mc 3,31-35; Lc 8,19-21; Jo 7,3-4), veremos que, assim como o grego adelphos (αδελφός) e os termos hebraico (אָח “ach”) e aramaico para “irmão” eram sempre empregados de forma mais ampla, pois o hebraico possui um vocabulário curto e não havia palavras para designar muitos dos graus parentescos como no português. Ou seja, na cultura judaica, por “irmão” deve-se entender não necessariamente parentesco sanguíneo. Outro detalhe é que se Jesus tivesse outros irmãos sanguíneos eles deveriam estar ao lado de sua mãe na crucifixão, e Jesus teria a entregue a seus cuidados, o que não ocorreu (Jo 19,25-27). Não há problema algum se José tivesse quantos filhos quisesse com Maria, afinal, eles eram legitimamente casados, no entanto, a tradição bíblica e eclesial sempre viu na figura de Maria a nova Arca da Aliança, incorruptível e intocável por nos trazer o próprio Deus.

José na Bíblia. Existem menções diretas e indiretas desta grande figura bíblica no Novo Testamento. Das menções diretas, isto é, das passagens que elucidam explicitamente seu nome, como vimos, temos relatos sobre sua descendência (Mt 1,16.23; Lc 2,4), quando é chamado “noivo” de Maria (Mt 1,18), de justo (Mt 1,19), alvo de sonhos de revelação (Mt 1,20.24), da permanência ao lado da manjedoura de Jesus com Maria (Lc 2,16), Jesus, ironicamente citado pelos seus conterrâneos de “filho de José” e neto de Heli (Lc 3,23). Das citações indiretas temos: a sua escolha do nome de “Jesus” (Mt 1,21.25), a apresentação do Menino Jesus no Templo (Lc 2,22), Jesus, chamado de “filho do carpinteiro” (Mc 6,3; Mt 13,55), a perca e o encontro do Menino Jesus no Templo (Lc 2,48-49), Jesus obediente a seus pais (Lc 2,51). Todas as passagens referidas a José são, portanto, cristocêntricas. O Evangelho de Lucas, que melhor trabalha a infância de Jesus, já não menciona sua presença a partir do terceiro capítulo, o que favoreceu a crença de que José seria de idade avançada e que teria morrido por volta do início do ministério público de Cristo (anos 30-33). Quando Jesus crucificado entregou Maria aos cuidados do “discípulo amado” (Jo 19,25-27), deixa a crer que Maria era viúva, e que o referido discípulo teria feito o papel que seria de responsabilidade do esposo ou de parente(s) mais próximo(s).

O Ano de São José. A dedicação do Ano de São José pode ajudar a evidenciar ainda mais sua figura e importância para a fé cristã, já que comumente tem sido uma figura um tanto esquecida na atualidade. Sua discrição não pode gerar esquecimento, já que ele aponta de uma maneira especial para a ação salvadora de Deus no mundo, mantendo um lugar singular nessa história redentora. Foi exatamente por este motivo que a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, já incentivada pela sensibilidade de João XXIII e Bento XVI, promulgou o decreto que acrescenta o nome de São José nas orações eucarísticas II, III e IV do Missal Romano a partir de 1º de maio de 2013, sendo um dos primeiros decretos do pontificado do Papa Francisco. A posição da data deste jubileu ao lado da celebração da Imaculada Conceição de Nossa Senhora só reforça esta ideia, ele tinha algo de misterioso e, ao mesmo tempo, foi o protetor e advogado da Sagrada Família de Nazaré, portanto, patrono mundial das famílias, jamais podendo deixar de mencioná-lo. Fidelidade, humildade, amor, obediência, José foi se tornando um modelo a ser seguido sobretudo pelos homens cristãos. Em um encontro para as famílias de Manila, Filipinas, em 16 de janeiro de 2015, o atual Pontífice revelou:

Amo muito São José, porque é um homem forte e silencioso. Na minha escrivaninha, tenho uma imagem de São José que dorme e, quando tenho um problema, uma dificuldade, escrevo um bilhetinho e meto-o debaixo de São José, para que o sonhe. Este gesto significa: reza por este problema! (Vatican News, 01/05/2020).

Como cantava Irmã Míria T. Kolling: “Com Jesus e com Maria, festejemos hoje a glória. De José, que o Pai, um dia, fez entrar e nossa história”…

 

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