A feliz culpa de Adão

“A graça supõe natureza” é uma das célebres frases de São Tomás de Aquino, indica que Deus não anula nossa humanidade, que não devemos destruir o óbvio de nosso cotidiano e que Ele não nos fez anjos. Se nossa humanidade fosse algo negativo, Deus não nos teria criado, dado-nos sua imagem e espírito, muito menos teria se humanizado. Ao assumir nossa condição já salvou-nos para sempre, ao ressuscitar e ascender aos Céus, elevou nossa humanidade à mais alta dignidade, em outros termos, divinizou-nos.

A criação de Adão
“A criação do Homem” – Catedral Ortodoxa de São Jorge, Worcester, EUA

Como se canta no “Exultet” da vigília pascal: “Bendita culpa de Adão que mereceu tão grande redentor”. A queda do ser humano não tem a última palavra em nossa história com Deus. Mesmo após o “pecado original”, a mulher recebeu o nome “Eva”, que significa “mãe dos viventes”, ou seja, a linguagem do amor corrompido pelo pecado poderia encontrar seu significado original na família. Bendigamos a Deus pelos nossos limites, pela nossa humanidade, e sejamos pacientes com o que não podemos modificar, ou modificar de uma vez. A Bíblia lança um olhar positivo para nossa humanidade:

Ó Senhor, nosso Deus, como é glorioso vosso nome em toda a terra! Vossa majestade se estende, triunfante, por cima de todos os céus. Da boca das crianças e dos pequeninos sai um louvor que confunde vossos adversários, e reduz ao silêncio vossos inimigos. Quando contemplo o firmamento, obra de vossos dedos, a lua e as estrelas que lá fixastes: ‘‘Que é o homem – digo-me então –, para pensardes nele? Que são os filhos de Adão, para que vos ocupeis com eles? Entretanto, vós o fizestes quase igual aos anjos, de glória e honra o coroastes. Destes-lhe poder sobre as obras de vossas mãos, vós lhe submetestes todo o universo. Rebanhos e gados, e até os animais bravios, pássaros do céu e peixes do mar, tudo o que se move nas águas do oceano”. Ó Senhor, nosso Deus, como é glorioso vosso nome em toda a terra! (Salmos 8/9).

 

Um assunto que merece atenção e que foi cercado de mal entendidos e distorções foi a antropologia teológica, ou seja, a visão bíblica do ser humano. Muitas foram as heresias que, embora teologicamente bem combatidas, trazem um plano de fundo que revelam pessimismo na humanidade, em nossa natureza e condição. Muitas foram as correntes que fomentaram negatividade acerca do que é humano, como o jansenismo, apenas para ilustrar. Precisamos recuperar a visão teológica e positiva do ser humano, pois ninguém na vida será feliz com esta visão arrasadora e reprimida de si mesmo. Explodiríamos de amor se compreendêssemos que Deus não se arrependeu de nós. Em Gênesis “Deus se arrependeu de ter feito o homem” (Gn 6,6), mas esse arrependimento mostra um sentimento humano e, ao mesmo tempo, a exigência divina da santidade (compare com 1Sm 15,29), opondo-se ao pecado. Em muitos lugares na Bíblia, o termo arrependimento (divino) quer dizer aplacamento de sua cólera, não o pessimismo de Deus sobre nós.

Outro detalhe que merece atenção sobre nossa humanidade: para o povo judeu não é surpresa constar que a Bíblia contém muitas palavras oriundas de lábios não-proféticos; contém palavras de Deus, obviamente, mas também anseios humanos, sem intimidar aquele ideal de transmitir inspiração. Portanto, há palavras de Deus para o ser humano e há inúmeros insights humanos. Se a experiência profética pode parecer inalcançável pelo homem moderno, não se pode esquecer que os profetas eram também humanos e se deparavam com a mesma problemática hodierna entre o bem e o mal, entre luz e treva, vida e morte, amor e ódio etc., destacada em momentos singulares da vida há três mil anos. Portanto, pensamento profético é pensamento humano, assim também como a espontaneidade do homem e da mulher bíblica, flagrada na literatura sapiencial, por exemplo, é expressão clara dessa afirmativa.

Muitas pessoas hoje, com medo das decepções, acham que vão conseguir por muito tempo suprimir essa realidade de nossa humanidade, alguns cristãos até buscam cultivar uma ideia de santidade estratosférica, isto é, bem distante de nossas possibilidades, e vivem como calculistas, como se Deus nos cobrasse superpoderes na experiência com Ele ou uma perfeição que só cabe a Ele. Mas não é pecado sentir. Sentir não é bom nem ruim, é natural e pronto, a natureza é livre e ninguém será julgado por isso, mas sim pelas suas escolhas e atos. A melhor saída não é negar, fugir, reprimir, mas aprender a conviver com aquilo que eu não posso modificar, louvar ao Deus que rezou “Pai, se queres, afasta de mim este cálice; entretanto, não seja feita a minha vontade, mas o que Tu desejas!” (Lc 22,42). Enfim, não adianta vivermos choramingando aos quatro cantos do mundo, lamentando o paraíso perdido e sonhando com um outro que nem sequer sabemos decifrar. É preciso deixar Deus trabalhar em nós, e nos propormos a viver tudo o que estiver a nosso alcance.

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