Diversidade de religiões é a vontade de Deus

O título desta presente exposição foi extraído de um artigo do filósofo e teólogo judeu Abraham Joshua Heschel (1907-1972), trata-se de No Religion is an Island (“Nenhuma religião é uma ilha”), publicado no 21º volume da revista do Seminário Teológico da União de Nova York em janeiro de 1966, onde se pode encontrar a afirmação de que “talvez seja a vontade de Deus que nesta era deva haver mergulhadores em nossas formas de devoção e compromisso com ele. Nesta era, diversidade de religiões é a vontade de Deus” (HESCHEL, 1966, p. 10). Mas para compreender tal afirmação é indispensável conhecer ao menos o substancial do pensamento e atividades sociais do referido autor.

Abraham Heschel – Wikimedia Commons

Abraham Heschel foi um erudito rabino polonês oriundo do círculo dos hassidim, uma corrente de mística e piedade judaica que busca resgatar os elementos essenciais do judaísmo na modernidade, onde ele teria adquirido sólida formação espiritual e humana, sendo ascendente de ilustres rabinos. Teve a vida alavancada por inúmeras publicações e bolsas de estudo na Universidade de Berlim. No entanto, teve que migrar para os Estados Unidos, fugindo das perseguições nazistas que começaram a invadir a Polônia exatamente ao ano em que ele defendia sua tese doutoral (1933) sobre a consciência dos profetas hebreus (Die Prophetie, em alemão), obra que só foi publicada três anos mais tarde pela Academia Polonesa de Artes e Ciências. Na Europa, perdeu sua família quase inteira pela barbárie de Hitler.

Essa pode ser considerada uma tensa e ao mesmo tempo brilhante situação, pois mergulhado no estudo da Toráh e dos profetas do Antigo Testamento, ele será uma importante voz na sociedade em que esteve inserido, obtendo a amizade pessoal do pastor Luther King, do Papa Paulo VI e de outras importantes lideranças políticas e religiosas. Presenciou o contexto da Guerra do Vietnã, onde lançará duras críticas à violação dos direitos humanos, escrevendo ao então ministro da defesa McNamara e chamando aquele confronto de “obsceno”. Foi nesse período também que ele ficou mais conhecido, graças a importantes publicações como sua famosa trilogia: “O Homem não está só” (1951), “Deus em busca do Homem”, (1952)  e “O Homem à procura de Deus” (1954), trazendo uma atenção especial pela situação humana em um contexto desumanizante e propondo o retorno do transcendente para um imediato resgate da ética e sacralidade da natureza humana.

Heschel (centro, de boina) em um dos protestos com o Pastor King – Wall Street Journal

 

Depois de ter participado de um dos protestos pelos direitos dos negros e liberdade ao lado do pastor King, afirmou que aquele evento “foi tanto protesto quanto oração. Pernas não são lábios, e andar não é ajoelhar. E ainda assim nossas pernas proferiram canções. Mesmo sem palavras, nossa marcha foi adoração. Eu senti que minhas pernas oravam” (KIMELMAN, 1985). Diante do Concílio Vaticano II, obteve a simpatia do Papa Paulo VI através do cardeal Augustin Bea, responsável pelo recém criado secretariado para a unidade dos cristãos, elogiado e tendo suas obras traduzidas e publicadas por editoras italianas através de iniciativas do romano pontífice. Por isso, acredita-se que graças a esse rabino, a Igreja Católica teria acelerado a promulgação da Declaração Nostra Aetate em outubro de 1965, a qual inocenta de forma oficial os judeus em geral pela crucifixão de Cristo.

Heschel com o cardeal Augustin Bea , SJ – AJC Archives

Em uma audiência geral do Papa Paulo VI em Roma, aos 31 de janeiro de 1973, poucos dias após falecimento de Heschel, Sua Santidade discursava sobre o tema da procura de Deus e, com surpresa, esse teólogo judeu era citado, como registra Dom Joaquim Zamith (in HESCHEL, 1975), o que não era comum a citação de autores não cristãos em discursos oficiais de um papa. Essa aproximação dos cristãos fez com que o rabino sofresse a reprovação de seus correligionários mais conservadores e, no entanto, ele foi considerado pelos seus e por muitos cristãos um profundo teólogo, verdadeiro místico e profeta de nossos tempos. A partir desse contexto, nota-se que o pensamento judaico foi oferendo luzes ao pensamento cristão na reconstrução do ser humano e do mundo, despontando um movimento teológico que ficou conhecido como After Auschwitz, sendo Heschel um dos seus principais precursores. Exatamente no contexto onde se falava na “morte de Deus”, esse rabino vai propor o retorno do transcendente.

Papa Paulo VI com o rabi Heschel – Praying With My Legs (Facebook)

Em 1991, seu artigo No Religion is an Island foi transformado em livro, acrescido de ensaios contendo o testemunho e colaboração de amigos(as) e ex-alunos(as) de Heschel oriundos das tradições muçulmanas, judaicas e cristãs. Heschel nasceu, viveu e morreu professando a sua fé judaica e soube unir credos e sociedades em uma luta comum. Ele começa fazendo um apelo existencial:

Falo como membro de uma congregação cujo fundador foi Abraão, e o nome do meu rabino é Moisés. Falo como uma pessoa que conseguiu sair de Varsóvia, a cidade em que eu nasci, com apenas seis semanas antes do início do desastre. Se meu destino não fosse Nova York, teria sido Auschwitz ou Treblinka. Eu sou uma marca arrancada do fogo, no qual meu povo foi queimado até a morte (HESCHEL, 1966, p. 1).

Diante do contexto da segunda Guerra, Heschel entendeu que o cristianismo não era o verdadeiro inimigo do judaísmo, e sim o nazismo que, segundo ele,

em suas raízes foi uma rebelião contra a Bíblia, contra o Deus de Abraão. Percebendo que o cristianismo plantou o apego ao Deus de Abraão e o envolvimento com a Bíblia Hebraica no coração do homem ocidental, o nazismo resolveu que deveria exterminar os judeus e eliminar o cristianismo e, em vez disso, traria um renascimento do paganismo teutônico. […] É ligado à questão de salvar o brilho da Bíblia Hebraica nas mentes do homem que judeus e cristãos são chamados a trabalhar juntos. Nenhum de nós pode fazer isso sozinho. Ambos devemos perceber que em nossa era antissemitismo é anticristianismo e que anticristianismo é antissemitismo (HESCHEL, 1966, p. 2).

Como vimos, essa reflexão vai se alargando para o campo das relações judaico-cristã e finaliza com um apelo para todas as religiões e religiosidades contemporâneas para que não se fechem às dores e ansiedades do mundo. O substancial desse pensamento de Heschel são os elementos comuns que ele vê entre o judaísmo e o cristianismo, a ponte que ele chama de “interfé” para uma comunicação e cooperação inter-religiosa, e que constitui as riquezas espirituais e morais dessas tradições religiosas: os Mandamentos, Toráh e esperança messiânica. Essas são as mais importantes bases comuns que possibilitam uma aproximação, respeitando suas individualidades, ou seja, não trata da importância da halachá para os judeus ou da Igreja para os cristãos, mas de um pathos divino que alcança o ser humano como um todo, uma vez formado à tzelem Elohim (imagem de Deus), realidade que antecede à toda forma religiosa e que apela por unidade.

No mundo da economia, ciência e tecnologia, a cooperação existe e continua a crescer. Mesmo os estados políticos, embora diferentes em cultura e competindo um com o outro, mantém relações diplomáticas e buscam a convivência. Somente as religiões não se falam. Mais de cem países estão dispostos a fazer parte das Nações Unidas; ainda nenhuma religião está pronta para ser parte de um movimento pelas Religiões Unidas (HESCHEL, 1966, p. 8).

Não se trata de fusão ou sincretismo. Estamos falando de diálogo, cooperação, de humanismo. Para Heschel (1966, p. 10), a religião é um meio e não um fim, “igualar religião a Deus é idolatria”, o mais importante é o Criador que a transcende. Muito se tem lutado em nome de Deus, mas sem Ele; muitos têm pecado gravemente contra o segundo mandamento, isto é, utilizado seu Nome em vão por motivos “religiosos”. Deus é Pai que inclui, quando a religião desintegra contradiz a si mesma, porque, quando um ser humano adota uma religião, ele assume uma esperança escatológica, uma visão de mundo e um horizonte para sua vida. “Não é blasfêmia dizer: só eu tenho toda a verdade e a graça, e todos aqueles que diferem vivem nas trevas e são abandonados pela graça de Deus?” (HESCHEL, 1966, p. 10).

No episódio da Torre de Babel (Gênesis 11) vemos que a humanidade se constituía de um só povo e uma só língua, mas os homens foram dispersos por sua soberba, a unidade estava desde o início na vontade divina. Agora, o contexto é de diversidade: “Sim, do levantar ao pôr do sol, meu Nome será grande entre as nações, e em todo o lugar será oferecido ao meu Nome um sacrifício de incenso e uma oferenda pura. Porque meu Nome é grande entre os povos” (Malaquias 1,11). Com isso, Heschel defende a tese de que o profeta Malaquias reconhece a diversidade de formas religiosas e a afirmativa de que os diferentes povos, embora sem o saber, adoram a Deus, porque sua majestade transcende a dignidade da religião.

Em nossos dias, uma das maiores hipocrisias é a ideia de que Deus só fala através daquele(a) que tem chegado, e não naquele(a) que está a caminho. A voz de Deus atinge os seres humanos de diversas maneiras, e ninguém ou nenhuma religião é detentora do sagrado, ela está a serviço de Deus e não o contrário. É por esse motivo que a religião tem sido frequentemente acusada dos pecados de orgulho e presunção. Tem faltado o essencial, “humildade e contrição parecem estar ausentes onde mais necessárias – em teologia. A humildade é o começo e o fim do pensamento religioso, o teste secreto de fé. Não há verdade sem humildade, não há certeza sem arrependimento” (HESCHEL, 1966, p. 11-12). A fé humana não é um ponto de chegada, é um percurso, um êxodo, por isso até a heresia pode ser uma forma indireta de demonstrar a fé, uma peregrinação no deserto. É somente através da diversidade que encontramos nossa singularidade, ou seja, a hipocrisia, mais que a heresia, é a verdadeira causa do atrofiamento espiritual.

Heschel é crítico da modernidade, mas ao mesmo tempo apresenta grande esperança na humanidade. Ele não culpa a filosofia ou ciência pelo eclipse da religião na contemporaneidade, antes prefere trilhar o caminho do autoexame,  pois exatamente quando “a fé se torna mais propriamente uma herança tradicional do que uma fonte de vida; quando a religião fala mais pela autoridade do que pela voz da compaixão – sua mensagem torna-se sem significado” (HESCHEL, 1975, p. 15). Sua crítica religiosa se dirigia especialmente à substituição da fé pelo credo ou formas frívolas de leis e doutrinas e, nesse caso, ao fechamento das religiões aos anseios e medos humanos de nosso tempo. Diante do contexto de globalização e secularização, o “paroquialismo religioso” torna-se perigoso e cada vez mais inadmissível.

As religiões do mundo não são mais autossuficientes, não mais dependentes, não mais isoladas do que indivíduos ou nações. […] Os horizontes são mais amplos, os perigos são maiores… Nenhuma religião é uma ilha. Estamos todos envolvidos uns com os outros. Traição espiritual da parte de um de nós afeta a fé de todos nós. Visões adotadas em uma comunidade tem um impacto sobre outras comunidades. Hoje o isolacionismo religioso é um mito (HESCHEL, 1966, p. 3).

Enquanto as religiões se fecham ou digladiam entre si, Heschel via um outro grande movimento ecumênico e em grande expansão, o niilismo, o que constitui um inimigo comum. As religiões devem lutar contra a perda do sentido, como fizeram os profetas hebreus ao enfrentar a insensibilidade perante a voz de Deus e com relação à maldade no mundo. Seria outro grande motivo para a unidade entre as religiões a fim de somarem forças no serviço aos homens e mulheres de nossos dias, ajudando-os em suas questões mais profundas.

Há outro movimento ecumênico, mundial em extensão e influência: o niilismo. Devemos escolher entre inter-religioso e interniilismo. O cinismo não é paroquial. Devem as religiões insistir na ilusão de isolamento completo? Devemos nos recusar a falar um com o outro e esperar pelo fracasso um do outro? Ou deveríamos orar pela saúde uns dos outros e ajudar uns aos outros na preservação de respectivo legado, na preservação de um legado comum? (HESCHEL, 1966, p. 4).

Por fim, vemos que a atitude de isolamento religioso completo pode se configurar, no atual contexto social, político e religioso, em um fundamentalismo reacionário indiscernido, tão perigoso à sua singularidade quanto o seu ostracismo, já que a principal função da religião, para Heschel (1975), é fornecer repostas às questões centrais e mais profundas da existência humana, emprestando aos nossos homens e mulheres os insights que facilitem tal acesso. A diversidade religiosa, uma vez preservadas as suas singularidades, deve ser sinônimo de bênção, reverência, respeito, diálogo e cooperação em prol da busca pelo sentido, de uma agenda comum, de complementaridade e proposta de retorno do transcendente como forma de resgate da ética e sacralidade do ser humano em nosso tempo.

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Bibliografia

BÍBLIA DE JERUSALÉM. 3ª ed. São Paulo: Paulus, 2004.

HESCHEL, Abraham Joshua. Deus em busca do Homem. São Paulo: Paulinas, 1975.

HESCHEL, Abraham Joshua. Los Profetas. Supervisión de Marshall T. Meyer. Buenos Aires: Paidos, 1973.

HESCHEL, Abraham Joshua. “No Religion is an Island”. Union Seminary Quarterly Review: New York, vol. XXI, n. 2, part I, p. 117-134, Jan. 1966.

HESCHEL, Abraham Joshua. O Homem à procura de Deus. São Paulo: Paulinas, 1974a.

HESCHEL, Abraham Joshua. O Homem não está só. São Paulo: Paulinas, 1974b.

NOSTRA AETATE Declaração sobre a relação da Igreja com as religiões não cristãs In: Vaticano II: mensagens, discursos e documentos / tradução Francisco Catão – 2. ed. – São Paulo: Paulinas, 2007.

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