Entre holocausto, shoáh e o silêncio divino

Alguns estudiosos como Dominick La Capra e Carl Gustav Jung empregam a palavra “holocausto” para se referir ao grande e complexo acontecimento sofrido pelos judeus diante do nazismo alemão na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Giorgio Agamben o evita. O termo “holocausto”, em hebraico ‘olah (עוֹלָה‎), refere-se à uma realidade ritual, designa basicamente sacrifício, oferenda (Gn 22,2), enquanto shoáh (שׁוֹאָה) sugere terrorismo, extermínio, destruição, calamidade. O Dicionário Bíblico Strong (2002) apresenta ‘olah (ou a variante ‘owlah) como subir, oferta queimada, e aponta shoáh com os predicados devastação, ruína, desperdício, desolação (referindo-se à terra).

Imagem: reprodução

Não é simples encontrar uma definição precisa para a destruição dos judeus na Europa. “Todos os termos são parciais e insatisfatórios, impregnados de concepções históricas, políticas, filosóficas ideológicas e teológicas” (DEZINGER, 2007, p. 1). La Capra defende que não há termos inocentes e Holocausto pode ser uma das melhores escolhas num campo de imensa tensão linguística. O que podemos afirmar, com certeza, é que as portas do terceiro milênio se abriram em confronto trágico com a humanidade se autodestruindo. Não foram apenas os judeus que foram exterminados, mas a própria concepção de humanidade. No interior desse evento percebe-se o quanto a luz que emana do ser moderno encontra-se pálida ou ausente.

A crescente rejeição ao povo judaico, iniciando com a distinção entre cristãos e judeus levantada por  Justino Mártir – o que pode ser ilustrado na obra “Diálogo com Trifão” (meados do século II) -, perpassando pela forte politização do cristianismo no império constantiniano (séc. IV), destravando conflito entre as duas religiões, teve um fim intragável desde a ascensão de Hitler ao poder na primeira metade da década de 1930.

Na Alemanha pré-nazista a seguinte máxima sobre o homem era frequentemente citada: “O corpo humano contém uma quantidade suficiente de gordura para fazer sete barras de sabão, suficiente ferro para fazer um alfinete médio, uma quantidade suficiente de fósforo para produzir duas mil cabeças de palitos, suficiente enxofre para fazer pular uma pulga”. Talvez haja alguma conexão entre esta máxima e o que os nazistas realmente fizeram nos campos de extermínio: fazer sabão de carne humana (LEONE, “A imagem divina e o pó da terra”, 2002, p. 152).

Costuma-se falar na morte de Deus, mas parece que quem morreu mesmo foi o Homem. O ser humano, exaltado no Renascimento e no Iluminismo, na verdade, tornou-se um ser esquecido. Foi-lhe prometida liberdade e emancipação, no entanto, ele mal sabe definir a si mesmo. Nos assuntos mais preponderantes da vida ele tem pouco ou nada a dizer. O Super Homem moderno é um ser necessitado, um sujeito à procura de um predicado. A ganância pelo poder, mais que o ser, o consumismo irracional, a exploração acirrada do mundo e do espaço, a degradação da natureza e, sobretudo a falta de sentido da vida, só revelou seu blecaute e capacidade para a maldade. O fruto disso tudo é a alarmante desigualdade social, as injustiças, a crescente onda de miséria e violência ao redor do globo.

Esse mesmo eclipse desperta também a reflexão sobre a existência do mal no mundo e seu “sucesso”. Para este complexo e emblemático conceito/situação, é preciso antes ter em mente que, na concepção judaica, nada se explica por si mesmo sem auxílio do Criador de todas as coisas, e também não é nosso objetivo aqui desmistificá-lo ou oferecer uma resposta racional satisfatória. No entanto, também não se pode perder de vista que, ao ser humano foi dado, na Criação, nomear as coisas e os seres, feitos por Deus com todo amor e dignidade, mas que muitas vezes aparecem caóticos aos olhos humanos de hoje ante as escolhas feitas pela humanidade fora deste plano. Portanto, o ser humano deve constantemente recordar sua identidade, sua missão de proteger, transformar e dar significado às coisas.

Por regra geral Deus é silencioso (1Rs 19,9-14), como mostram os profetas: “Procurai o Senhor enquanto ele se deixa encontrar” (Is 55,6), mas isso não lhe faz alheio aos problemas do ser humano, muito menos conivente com os desastres e desgraças da humanidade. Para aprofundar a temática do silêncio divino, sugerimos a leitura de nosso artigo sobre O escândalo de Habacuc”. Deus não é (totalmente) mistério, o mistério é apenas uma dimensão da realidade divina, pois Ele é conhecido em Judá (Sl 76,1-2), a um povo se relevou e se autocomunicou, estabelecendo uma Aliança, uma relação.

A leitura da profecia de Habacuc é bem atual e existencialista, se comparada às questões em torno do suposto silêncio de Deus e o sucesso da maldade no mundo. Esse profeta também chega a acusar o próprio Deus, mesmo reconhecendo seu amor e a proclamação dos profetas em favor da justiça (Hab 1,14). O Senhor é aquele que tanto ama a humanidade e que não se cansa de esperar pelo ser humano. Tudo isso revela a angústia do profeta que, com o desenrolar de sua experiência, decide esperar outro encontro com Deus antes que se desesperar. Como se pode ver, a angústia divina é confundida e mesclada à dos profetas, o que também parece revelar o estado espiritual de seu povo e forte apelo à fé.

O autor do Deutero-Isaías (Is 40 – 55) também tenta preencher uma lacuna histórica e existencial da experiência humana ao dar sentido (divino) ao sofrimento. Para ele, o sofrimento do povo não deve ser interpretado como penalidade, mas antes como expiação dos pecados, comparado a um ritual (‘olah) em prol da libertação e redenção revelados a Israel e estendido à toda humanidade, pois sofrer como castigo é responsabilidade do ser humano, sofrer como redenção é responsabilidade de Deus. Ele jamais se alegra com o sofrimento das pessoas, pelo contrário, o sofrimento de Israel é o seu pesar, e nem todos os males ocorridos ao ser humano devem ser vistos como vontade de Deus, pois Ele tem um compromisso, uma solicitude pelos oprimidos e contritos (Is 57,15). O profeta deve buscar entender os sofrimentos do povo, nisto, ele tem em comum com o Deus de Israel. A consolação nasce da compaixão (Is 49,13), que é um atributo divino, mas que pode e deve ser compartilhado pelas pessoas.

O ser humano precisa entender que ele mesmo é sentido, mas não o é em si mesmo, pois mal sabe definir esse sentido e muito menos aonde estão seus desejos. O eu não é o centro, é apenas um raio, ou seja, não é seu princípio e fim, seu eu é uma necessidade, mas não o é em si mesmo, pois o que é permanente em nossa vida não é a paixão nem o prazer, nem a alegria, nem o sofrimento, mas a resposta a uma necessidade; as necessidades são temporárias, menos o real drama de sermos seres necessitados. Portanto, podemos nos perguntar até onde vai a ambição e a soberba das pessoas de hoje que buscam vida no espaço e o adoram, mas que ignoram aquele(a) que está a seu lado; o ser humano que encontra vida em Marte, mas que perde o sentido da própria vida.

Em memória ao Holocausto ocorrido na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o maior genocídio documentado da história, onde milhões de vidas foram ceifadas e descartadas como lixo, entre elas judeus (estimando 6 milhões de vítimas), ciganos, negros, homossexuais, deficientes físicos e Testemunhas de Jeová, é um evento não para ser celebrado, mas para atinar nossos sentidos acerca da maldade humana e de sua possível perversidade, a fim de que tal crueldade jamais se repita, e que as mentes e corações humanos se abram ao transcendente, à compaixão e à justiça.
Vivemos uma das maiores horas da história. Os falsos deuses estão aos poucos desmoronando, e os corações estão famintos da voz de Deus. Mas a voz foi sufocada. Para recapturar o seu eco, devemos ser honestos em nossa boa vontade de ouvir, devemos estar sem preconceitos em nossa disposição de entender. Um dos grandes “milagres” do contexto pós-guerra foi o movimento teológico conhecido por “Theology after Auschwitz” (teologia depois de Auschwitz), onde um dos principais nomes foi Abraham Heschel, propondo retomar o pensamento sobre Deus (transcendência), embora  em um contexto traumático e frustrante de guerras e revoluções nas quais se falava na “morte de Deus”, mostrando um grande otimismo e esperança na humanidade e propondo um reencontro com a dignidade e sacralidade do ser humano.

 

O Papa Paulo VI nomeou o Cardeal Augustin Bea (1881-1968) para o recém criado secretariado para a unidade dos cristãos, trabalho que logo foi se estendendo ao diálogo com as religiões não cristãs, motivados pelo espírito do Concílio Ecumênico Vaticano II. Como fruto, a Igreja promulgava a Declaração Nostra Aetate (“em nossa época”, em latim) aos 28 de outubro de 1965 onde, em seu quarto número, se põe fim a um mal entendido entre cristãos e judeus que perdurou por quase dois milênios. A Igreja Católica, de forma oficial, inocentava os judeus em geral pela crucifixão de Cristo, missão que podemos classificar como ética religiosa. Desde então, a teologia judaica vai oferecendo luzes ao pensamento cristão no contexto pós-guerra, como ocorreu com o teólogo Jürgen Moltmann e outros.

“Devemos compreender que em nossa época antissemitismo é anticristianismo e anticristianismo é antissemitismo” (Abraham Heschel em “Nenhuma religião é uma ilha”, 1966). 

Como cristãos(ãs) de hoje, fruto da fé do povo judaico, e filhos e filhas do Deus de Abraão, Isaac e Jacó, repudiamos toda e qualquer forma de antissemitismo, preconceito, intolerância e violência, mesmo que simbólicos em nome da fé ou religião, ocorridos em qualquer etapa da história. Acreditamos que o povo judeu continua povo de Deus, povo da Aliança, pois Deus nunca falha ou muda (Ml 3,6). Acreditamos também na unidade dos corações,  na possibilidade de reconciliação como profetizou Malaquias (Ml 4,5-6), sem que isso indique “cristianização” do povo judeu. Ansiamos ainda a autocompreensão e colaboração mútuas, desde o pensamento a uma agenda que desperte a imaginação e lealdade nos homens e mulheres de nosso tempo, a partir de uma fé viva e do testemunho desta, em prol da construção de um mundo menos frio e escuro.

Os que confiam no Senhor são como o monte de Sião; nunca se abala, está firme para sempre. Jerusalém… as montanhas a envolvem, e o Senhor envolve seu povo, desde agora e para sempre. O cetro do ímpio não permanecerá sobre a parte dos justos, para que a mão dos justos não se estenda ao crime. Faze o bem, Senhor, aos bons, aos corações retos; e os que se desviam por trilhas tortuosas, que o Senhor os expulse com os malfeitores. Paz sobre Israel! (Sl 125).

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