Irmã Maria Faustina Kowalska nasceu em Glogowiec, Polônia, aos 25 de agosto de 1905, recebendo o nome de “Helena”, e faleceu com a “idade de Cristo” (33) aos 5 de outubro de 1938 em Cracóvia. É conhecida entre os teólogos como uma das figuras mais místicas do século passado. Dizendo isso hoje é maravilhoso, mas se lhe fôssemos contemporâneos, viríamos que a situação enfrentada não foi tão agradável, como geralmente ocorre entre os santos e místicos, em meio a um ambiente de descrédito, desconfiança e muitas vezes de duras perseguições, sobretudo por aqueles que lhe são mais próximos.
Ficou mais conhecida graças à redação de seu Diário espiritual, feito sob orientação de seus diretores espirituais; no entanto, não me deterei a seu conteúdo ou ao aspecto psicológico, mas a alguns dados históricos e teológicos em torno da vida desta conhecida religiosa.
1 Aspectos biográficos e vocação
Deus tem memória. O chamado de Deus não anula nossa história, nem permite esquecer de nossas raízes, bem pelo contrário! É um eterno “lembra-te” (32x no Antigo Testamento). Uma pessoa ou comunidade religiosa que se preze tem os olhos fixos no Céu e os pés bem firmes no chão, como que um “observatório astronômico”. Costumamos dizer que a vocação imprime caráter (e acrescento: não apaga memória!). Por isso, é importante que tenhamos em mente de onde viemos e para onde vamos, estarmos atentos aos sinais internos e externos, ou melhor, às pegadas de Deus em nossa vida. Muitas vezes, quando pensamos em Nossa Senhora ou nos santos, nos vem imediatamente à tona seus privilégios e carismas, almejamos suas virtudes, porém, fazemos um caminho inverso (de cima para baixo), quase sempre deixamos em segundo plano ou ignoramos o processo histórico e biográfico. Por isso muitas vezes nos vemos reduzidos. Mas vejamos como o divino se encontrou com a humanidade dessa mulher.
Helena foi a terceira dos dez filhos de aldeões de Glogowiec, família muito simples e piedosa. Ela frequentava a igreja de Swinice Warskie, onde aos sete anos de idade já sentia o chamado de Deus e inclinação para a vida religiosa. Porém, como narra em seu Diário, não tinha alguém que pudesse falar sobre essas coisas. Eram notórias algumas virtudes que a distinguiam: piedade, amor à oração, diligência, caridade e principalmente obediência. Frequentou a escola por menos de três anos, mas a lucidez em seus escritos deixa transparecer uma linguagem objetiva (ela escreveu o Diário simplesmente por obediência, e via isso como uma penitência). Aos dezesseis anos sai de casa para trabalhar como doméstica a fim de buscar seu autossustento e ajudar a família, que desaprovava sua vocação, levando-a, com isso, a sufocar essa ideia.
Sendo assim, entrega-se ao que ela chama de “vaidades da vida”. No entanto, foi exatamente nessa fase em que o chamado persistiu com mais força. Deus comumente tem formas peculiares e distintas para chamar alguém. Faustina estava dançando em um baile com uma de suas irmãs quando viu Jesus sofredor caído no chão e lhe interrogando: “Até quando hei de ter paciência contigo e até quando tu me decepcionarás?” (Diário, 9). Nesse momento, começam as manifestações místicas. Ela nada mais consegue ver no ambiente senão aquela cena misteriosa e impactante. Em um determinado momento, consegue sentir sua irmã ao lado, disfarça uma dor de cabeça e corre imediatamente para a catedral de Santo Estanislau Kostka, onde se debruça diante do Santíssimo Sacramento, procurando discernimento para o ocorrido, ao que escuta de Jesus: “Vai imediatamente a Varsóvia e lá entrarás no convento” (Diário, 9).
Conta todo o ocorrido para a irmã. Retornando à sua casa, leva apenas um vestido consigo, e pede a esta última que se despeça da família por ela. De fato, “quem ama seu pai ou sua mãe mais que a mim não é digno de mim” (Mt 10,37), foi o que Jesus quis dizer com deixar “que os mortos enterrem seus mortos” (Mt 8,22). A jovem Helena bateu à porta de cada convento que encontrava, mas era sempre rejeitada. Foi aceita somente em 1º de agosto de 1925 na congregação das Irmãs da Divina Misericórdia. Antes disso, teve que trabalhar como doméstica para conseguir seu próprio enxoval, no entanto, seu coração estava feliz e em paz (Diário, 17). Em sua comunidade religiosa, exerceu funções muito simples, tais como cozinheira, jardineira e porteira. Suas experiências místicas não lhe tiravam a discrição, zelo, serenidade e amabilidade no convívio com as pessoas, embora o estilo de vida religiosa de sua época fosse rigoroso e austero, com duras penitências e jejuns que lhe levaram, inclusive, a tratamento de saúde e hospitalização. Debilitada, lembrando-nos Santa Teresinha do Menino Jesus, a jovem irmã Faustina também sofreu e faleceu com forte tuberculose.
2 Contexto histórico e religioso
O evento histórico mais marcante e contemporâneo à Santa Faustina foi a Primeira Guerra Mundial, que ficou conhecida como “a guerra das guerras”, durando exaustos cinco anos (1915-20). Se Faustina tivesse vivido um ano a mais, teria presenciado o caos da Segunda (1939-45) que, infelizmente, teve por estopim o ataque de seu país em 1º de setembro de 1939 pelas tropas de Hitler. A Guerra que ela presenciou, despontada na Europa por motivos complexos como imperialismo, ideais nacionalistas e acordos militares, provocou o terror e uma geração de jovens que cresceu traumatizada, resultando em uma soma de 10 milhões de mortos e muitos desacertos que provocaram o referido confronto posterior. Lembrando que, do contrário das guerras anteriores, começou-se aqui a utilização de armas químicas, como o gás clorídrico pela Alemanha, adotado por outros países e mais tarde substituído pelo gás mostarda.
Enquanto isso, no mundo religioso, a humanidade conhecia o fenômeno das aparições de Fátima – Portugal (1917), e sua mensagem por uma cultura de conversão interior e paz mundial. Uma das mensagens mais conhecidas do Diário é o apelo de Jesus: “A humanidade não encontrará paz enquanto não se voltar, com confiança, para a minha misericórdia” (Diário, 300), portanto, as revelações desse período abrangem sempre essa dimensão interna (apelo à oração, penitência, conversão) e externa (paz mundial), ou seja, aquilo que acontece a nível global tem reflexo direto do mundo interior de cada um(a) e de todos os homens e mulheres. A paz não é somente ausência de guerras e conflitos, mas fruto da justiça divina e da unidade dos corações (Is 32,17). Outro detalhe importantíssimo é que, em plena época de confronto da Segunda Guerra, um jovem operário polonês chamado Karol, que trabalhava na fábrica Solvay, perto do mosteiro de Lagiewnisk, seria então o maior propagador da mensagem de Jesus Misericordioso e futuro responsável pela instauração da festa da Divina Misericórdia e canonização de sua “apóstola”, o futuro Papa João Paulo II.
3 Histérica ou santa?
No início do século passado, uma das ciências que conhecia grande ascensão era a psicologia e, para ser mais específico, o ramo da psicanálise. Sigmund Freud (1856-1939) trouxe à tona para o campo científico os temas do inconsciente e do ego, abordando a personalidade e alma humana sob a ótica da sexualidade e sua energia. No entanto, a psicanálise nascente chegava a assumir posturas tão reducionistas e universalizantes que todo mundo era visto como anormal e necessitado dela.
A psicologia tinha, no início, a religião como um de seus maiores objetos de estudo, no entanto, houve uma linha tendenciosa que achou ser capaz de desmistificar todos os fenômenos religiosos ou enquadrá-los a meros estados de ilusão ou anormalidade mental. O fato é que tal visão extremista hoje pode ser julgada como clandestina, uma vez feita à distância, sem dialogar com o saber teológico e religioso, forçando a classificar as experiências religiosas como subjetivistas e sujeitas à patologia:
Diante desses paralelos e analogias podemos atrever-nos a considerar a neurose obsessiva com o correlato patológico da formação de uma religião, descrevendo a neurose como uma religiosidade individual e a religião como uma neurose obsessiva universal. A semelhança fundamental residiria na renúncia implícita à ativação dos instintos constitucionalmente presentes; e a principal diferença residiria na natureza desses instintos, que na neurose são exclusivamente sexuais em sua origem, enquanto na religião procedem de fontes egoístas (FREUD em “Atos obsessivos e práticas religiosas”, 1907).
Nem Santa Faustina escapou. Movido por questão de prudência, seu confessor e diretor espiritual, Padre Miguel Sopocko (que também está em processo de canonização), com aprovação da superiora do convento, Irmã Irene, achou por bem, em um determinado momento, submetê-la a exames psicológicos e físicos, a fim de lhe comprovar saúde e amenizar as queixas que se faziam em torno de sua experiência mística. Embora gozasse de boa fama, na vida interna de seu convento era às vezes tida como histérica ou excêntrica (Diário, 173). Como vemos, a desconfiança era de todos os lados. Pareceu-me oportuno tocar no assunto e fazer alguns esclarecimentos acerca desse ponto.
Segundo testemunho pessoal de Padre Sopocko em carta datada de 27 de janeiro de 1948, Faustina era-lhe uma figura delicada e espiritual em quem os dons espirituais se manifestavam, com maior frequência, a modo oculto, mas que às vezes podiam revelar-se sensivelmente através da intuição, visão e audição. Ela tinha profunda consciência intelectual de sua intimidade e união com Deus, era desapegada de tudo que dizia respeito a bens materiais e a si mesma. O padre destaca, sobretudo, a atuação de três dons: ciência, sabedoria e inteligência, o que lhe ajudava a compreender sua condição e a suportar as provações e humilhações.
O atributo divino que mais se destacava para Faustina era a misericórdia divina, da qual ela se via indigna de ter acesso, chegando até a duvidar de tais revelações. No Diário (n. 54), conta que chegou a confundir Jesus com um fantasma e a rejeitar aqueles fenômenos, temendo ilusão, alucinação, fantasia ou até mesmo tentação do demônio. Porém, os efeitos de tais revelações não alcançaram apenas a religiosa, mas também muitas pessoas que tiveram acesso à mensagem e experiência, e assim sucessivamente, superando expectativas. Teve dificuldade com suas irmãs religiosas e com padres, sobretudo com diretores espirituais que não sabiam distinguir ou não possuíam contato mais íntimo com o mundo sobrenatural. O Padre Sopocko seria sua “ajuda visível na Terra” (Diário, 53) e um grande executor da vontade de Jesus Misericordioso.
O místico e o esquizofrênico parecem nadar nas mesmas águas. A diferença é que o esquizofrênico afunda, enquanto o místico aprende a nadar. Ou seja, o místico, do contrário dos extáticos, não procura o êxtase pelo êxtase, não perde sua consciência, liberdade e autonomia, não se confunde com a divindade, antes se vê procurado por uma presença externa, a qual chama revelação. Muitas vezes os santos, como os profetas bíblicos, até rejeitavam o êxtase, apresentando objeções ou se achando indignos da presença divina (Is 6,5; Jr 1,6; 20,7).
O êxtase é um fenômeno comum, é um evento humano, embora já acusado de primitivista,“consiste num estado de espírito em que a mente transcende sua situação habitual” (Paul Tillich, 2005, p. 124). Para a psicologia, trata-se de uma retirada momentânea da consciência da circunferência para o centro, onde todos os demais elementos externos perdem atenção, podendo tal fenômeno se dar de forma sóbria (contemplativa) ou frenética (fervente), não devendo ser confundido com qualquer fenômeno dito supranatural, pois é apenas um meio de comunicação com a divindade.
O êxtase, ao contrário da possessão, não nega a estrutura humana, não a desvaloriza e nem a destrói, antes se manifesta aquilatando a estrutura racional e emocional do ser, pois Deus não precisa destruir sua própria criação para manifestar-se nela (Paul Tillich em “Teologia sistemática”, 2005, p. 570).
No caso de Santa Faustina, tal revelação acontecia graças a um estado de profunda contemplação/oração ou, esporadicamente, a um raptus mentis (rapto da mente). A aparente histeria se dá ao fato da pessoa envolvida não conseguir esconder ou narrar sua experiência pessoal de forma sistemática e com termos “inequívocos”, é como tentar dizer o indizível, o que sobra é apenas uma linguagem intuitiva e simbólica, alguns momentos de ansiedade. No êxtase de outras religiões, sobretudo das mais antigas, buscava-se fundir a pessoa com a divindade para obter um nível de vida superior ou atuação de dons extraordinários, é como se a alma desvinculasse momentaneamente do corpo, daí veio a associação do êxtase ao sono, estado hipnótico ou enfermidade. Já aqui, pelo contrário, trata-se de enfrentamento, encontro ou teofania, porque não há confusão de identidade nem perda de autonomia da consciência, mas um diálogo. Jesus continua Jesus, Faustina continua Faustina.
4 A teologia da divina misericórdia
Faustina parece ter preenchido uma grande lacuna na história da teologia no que se refere à misericórdia divina. Assim como o tema da pneumatologia (reflexão sobre o Espírito Santo), da ressurreição, da ecologia etc., fazia-se muita menção, mas nada se tinha de aprofundamento. Sabemos que a Igreja, mais que qualquer outra instituição religiosa, caracteriza-se pela alta produção literária, até já acusada de ser muito “livresca”. Temos inúmeros tratados, documentos magisteriais, publicações infinitas… Porém, nenhum tratado sobre o amor de Deus e sua misericórdia. Parece que por muito tempo temos nos acomodado à institucionalização, legalismos, ritualismos vazios. A teologia tem se tornado mais apologética, isto é, agido para se defender de ataques heréticos alheios, do que para orientar nossa própria experiência de fé; a escolástica tem assumido uma linguagem muito enfadonha, abstrata e exaustiva, afastando-se da simplicidade e profundidade da linguagem bíblica e patrística; a teologia dogmática tem se enrijecido e se transformado em distribuidora de anátemas (condenações)…
Como vimos, Faustina não era teóloga, mal completou três anos de estudos basilares, mas “o que é estulto no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; e o que é fraco no mundo, Deus o escolheu para confundir os fortes” (1Cor 1,27), ela não simplesmente falou sobre, ela encarnou a misericórdia em sua vida, era o que mais almejava: “Nem graças, nem revelações, nem êxtases, nem qualquer outro presente dado a torná-lo perfeito, mas a união íntima da minha alma com Deus” (Diário, 1107). Ora, o esforço por comunhão da alma humana com uma divindade é chamado de “mística”.
Mas o mundo parecia ter esquecido do amor de Deus, e este é o motivo de todos os males e guerras. Quem teve a intuição de recordar ao mundo que Deus é “rico em misericórdia” (Ef 2,4) foi João Paulo II com sua encíclica Dives in Misericordia, publicada aos 30 de novembro de 1980, seguido de Bento XVI com Deus charitas est (sua primeira encíclica), datada de 25 de dezembro de 2005 e, agora, com Papa Francisco temos: a bula Misericordiae Vultus (2015), que instituiu o Ano da Misericórdia, a carta Misericordia et misera (2016) e suas incontáveis menções ao tema. Por que não dizer que todos esses gestos são ecos de Jesus Misericordioso através de Faustina?
Como vimos, a mensagem transmitida por essa religiosa teve grandes impactos na teologia contemporânea. O próprio Papa Francisco criou o verbo “misericordiar” em seus discursos. A palavra misericórdia está impressa em seu brasão desde quando eleito bispo (1992), preservada no do pontificado (2013): “miserando atque eligendo” (“com sentimento de amor o escolheu”), extraído de uma homilia de São Beda, o Venerável, que cita a vocação do Apóstolo Mateus (Mc 10,21; Hom. 21; CCL 1, 22, 149-151). Segundo conta o Papa, ele tinha 17 anos quando, após uma confissão, sentiu-se profundamente tocado a seguir a vocação religiosa, experimentando naquele momento a descida da misericórdia sobre sua vida, aquele mesmo olhar misericordioso que atingiu Mateus.
A palavra amor/misericórdia nos chegou, teologicamente falando, como tradução latina do termo hebraico hesed, podendo também ser escrito chesed (חֶסֶד). Outro sinônimo é rachamim (רַחֲמִים): misericórdia, compaixão, piedade, bondade. Nota-se aqui a raiz “útero” (rechem) que também pode ser traduzido por “colo”. Nada melhor a se comparar com o amor divino que o amor ou o colo de uma mãe! No livro de Isaías, o amor de Deus é comparado ao amor materno: “Pode uma mulher esquecer-se daquele que amamenta? Não ter ternura pelo fruto de suas entranhas? E mesmo que ela o esquecesse, eu não te esqueceria nunca” (Is 49,15). Quando o termo foi traduzido para o latim, ficou com a junção dos substantivos miseratio (miséria, compaixão) e cordis (coração). A misericórdia é a compaixão do coração. Jamais esqueçamos que Deus é amor, pai, antes que Senhor ou juiz.
É admirável notar que Faustina, embora se visse pequena, com tão poucos recursos e alcances, enfrentando toda reprovação, conseguiu exercer, mesmo de dentro do seu convento, um fervoroso apostolado, revelando ao mundo inteiro a face misericordiosa de Deus. Mais que uma festa, um terço ou um quadro, está seu grande testemunho de amor a Deus e o empenho pela salvação do gênero humano. Frente à todas as acusações e provações, optou pelo caminho do silêncio, da oração e da obediência, levando às últimas consequências aquilo que acreditava ser inspiração divina. Como ela mesma dizia, nem seus êxtases, visões ou dons se comparam em fazer a vontade de Deus.
O Deus de Faustina era ilimitado em amor, bondade e perdão, desmedidamente apaixonado pelas almas: “Quanto maior o pecador, maior direito tem à minha misericórdia” (Diário, 723; 1182); ela não conheceu outra forma de retribuí-lo senão a dedicação de toda sua vida como o melhor dos apostolados. Esta mensagem continua central e atual, pois a misericórdia divina é único conforto e antídoto que limita a ação do mal no mundo em que vivemos. “Que toda a humanidade conheça a Minha insondável misericórdia. Este é o sinal para os últimos tempos; depois dele virá o dia da justiça” (Diário, 848).