Fé e religião: resposta ou alienação?

No latim, a palavra religio, para Cícero (106 – 43 a.C.), contextualizando o mundo cotidiano e religioso politeísta da Roma antiga, tem sua origem no verbo relegere, ou seja, uma disposição subjetiva, um movimento reflexivo ligado a algum temor de caráter religioso, trata-se de refazer uma escolha já feita. O termo também era utilizado para expressar escrúpulo (religioso), atenção, escuta, respeito, pudor ou piedade. Para Lactâncio  (240 – 320 d.C.) e Tertuliano (150/55 – 222 d.C.), tendo em vista a religião cristã, preferem associar religião ao verbo religare, que significa “ligar”, ou seja, um laço passivo de piedade, uma relação de dependência do Homem ao Criador. Entre uma visão e outra, é possível situar a religião numa das mais fundamentais e originais experiências humanas, seu maior papel é proporcionar ao ser humano um retorno à transcendência e um autoconhecimento.

Detalhe do afresco “A criação de Adão”, por Michelângelo (1508-1515).

Dito isso, faz-se necessário distinguir religião (ou religiosidade) de . O primeiro indica a forma com que se expressa, o segundo é seu conteúdo. Também são um tipo de conhecimento, pois tratam de uma experiência interna que lida com as questões fundamentais do ser humano, gerando insights, tais como a vida e seu sentido, a morte, obediência, imortalidade, recompensa, adoração etc. Do contrário da filosofia, que começa com perguntas, a religião apresenta-nos o mistério das respostas de antemão, cabendo ao ser humano aderi-las (fideísmo), suspendê-las (ceticismo) ou negá-las (ateísmo). Independentemente do feedback humano, é uma realidade com a qual teremos de conviver ou ouvir mencionar. No entanto, mais importante que os dogmas e enunciados de uma experiência religiosa é o ato de crer, que lhe é anterior. O ser humano é, por natureza e vocação, um ser que crê: em algum(s) deus(es), na natureza, na vida, no outro ou nele mesmo, ou seja, acreditar é próprio de quem vive e reflete.

Vale lembrar que os termos comumente utilizados para relacionar e expressar a religião e a fé não vem, necessariamente, do saber religioso-teológico, mas antes da economia, ciência que lida  não apenas com controle ou despesa financeira, mas com a utilização dos bens e recursos para nosso bem estar. Por exemplo, acreditar é dar crédito; confiança vem de fiança, financiamento, que também é sinônimo de concordar, do latim com o “cor” (com o coração), é firmar um acordo, aceitar, definir. A palavra fé vem do latim, que é fide, raiz de fidelidade. De igual modo, na Sagrada Escritura, fé diz-se emunah (אֱמוּנָה) e vai além da crença, que é apenas o primeiro e mais simples passo. Aqui é seguimento, caminhada, um processo, ou seja, é fidelidade, comprometimento, convicção. Na concepção de São Paulo Apóstolo, “A fé é o fundamento da esperança, é uma certeza a respeito do que não se vê” (Hb 11,1), ou seja, nem sempre pode ser sinônimo de “segurança”, racionalmente falando, mas antes de um voto de confiança.

Desde os tempos mais remotos da história humana, o Homem teve a sensação de estar sendo observado por um ser extraterreno ou supremo. Antes da revelação de Deus a Abraão, esse mesmo Homem se via extasiado pelos fenômenos da natureza, sua religião era predominantemente natural ou anímica, por isso cultuava o sol, a lua, os astros, as plantas, os animais, os seres marinhos, os elementos primordiais da natureza (ar, terra, fogo, ar), o tempo etc. Depois, encontramos religiões antropomórficas, onde os reis, imperadores ou figuras importantes eram tidos como personificações de divindades ou semideuses. Para a religião bíblica, o ser humano será lugar especial da teofania, embora não seja deus: “Eis que estavas dentro e eu fora! Seguravam-me longe de Ti as coisas que não existiriam senão em Ti. Estavas comigo e não eu Contigo…” (Santo Agostinho em “Confissões”).

Já a definição de Homem (em sentido genérico) nas religiões antigas é complexa e não homogênea, mas basicamente acredita-se que o ser humano surgiu de um “acaso” ou para reparar a batalha dos deuses, sendo apenas um fantoche ou sombra da vida divina. Exposto à fragilidade, morte, doença, sofrimento e intempéries da vida, este tem que se esforçar para agradar-lhes. A religião dos gregos e filósofos concebe um deus indiferente e sublime demais para se inclinar ao homem e seus interesses. Já o Deus da Bíblia deu-lhe sua imagem e semelhança, é totalmente interessado e misericordioso ante os problemas humanos e seu cotidiano, embora permaneça O Santo, separado, transcendente… Mostra-se pai de todos, não apenas juiz; amante, não apenas rei. Portanto, longe do Criador este Homem é um egoísta, próximo Dele torna-se divino, cocriador e seu parceiro.

Esta consciência de Deus implica, necessariamente, responsabilidade. Se Deus se aproxima e torna-se realidade à nossa alma, então deixa de ser ideia e passa a sujeito, pois se apresenta por primeiro, e o Homem deve buscar respondê-lo. Esta sensação de estar sendo observado por um ser sublime sempre foi um fato na existência humana, e foi exatamente aqui onde surgiu a religião, da pergunta do que fazer com essa realidade misteriosa que nos envolve. Deparado com a revelação, agora o caminho a ser traçado deve ser o de retorno a Deus (daí “religare”). Deus é aquele que segura um espelho para sua criatura e, embora essa imagem possa estar embaçada, não deixa de ser real. O autoconhecimento humano é a mais profunda fonte de religião, ainda mais se percebemos essa imagem divina que refletimos. Imagem, no sentido bíblico, pode também  ser compreendida por “símbolo”, ou seja, não apenas representação abstrata, mas como que a outra parte de um todo.

É curioso notar que o uso literal do termo religião pode se dar a modo positivo ou negativo em nosso cotidiano. Quando queremos dizer que alguém executa algo “religiosamente” podemos nos perguntar em que sentido o faz. Em sentido positivo, a pessoa pode estar totalmente envolvida, dedicada, devotamente entregue àquilo, com todo afinco e delicadeza, o que se torna um elogio. Mas também, posso estar querendo afirmar que a pessoa é muito metódica (ritualista), rigorosa, dogmática, cega, fanática, o que seria uma crítica. Isto se deve exatamente pelo fato da experiência religiosa estar impregnada na alma humana ou associada a inúmeros exemplos de experiências religiosas e culturais que possam ter influenciado e moldado uma personalidade. Quando alguém dedica-se exclusivamente a uma coisa ou não consegue enxergar nada além, podemos até dizer que a pessoa criou uma religião ou se considera um deus. Nesse caso, a própria ciência ou filosofia podem chegar a ser tão “dogmáticas” quanto à religião.

É verdade que as experiências religiosas (crenças e sentimentos) podem estar entre as mais decepcionantes atividades do espírito humano, não é feio ou ruim ser sincero! É necessário usarmos de honestidade para saber se estamos vivendo realmente a fé ou simplesmente carregando um fardo de uma herança religiosa que terceiros colocaram em nossos ombros; se se trata de convicção ou asserção, de probabilidades ou certezas, de meras palavras, hipóteses, ou de uma presença viva, se é realmente em Deus que cremos ou o buscamos por interesses pessoais; precisamos refletir se Ele realmente nos “preocupa”… Os ensinamentos originais da religião não são dados em termos racionais ou dogmáticos, mas antes em expressões indicativas, ou seja, em nosso modo de viver. A religião é o que fazemos dela: uma fonte de vida e saúde ou, sem discernimento, uma arma ou manicômio.

A crise entre religião e ciência não é atual, foi estabelecida desde a Idade Média. O Iluminismo despontou com a certeza quase ilimitada na razão e na liberdade, o que hoje nos faz perceber certa imaturidade nessa ideologia. O neopositivismo e o racionalismo parecem já não convencer tanto, embora nosso atual contexto seja moldado pela racionalidade crítica e pela razão científica. Até o século XIV, com a vinda do Humanismo e do Renascimento, o escolasticismo foi perdendo força para o novo sistema racional em prol da transformação terrestre. O cisma entre Oriente e Ocidente (1054), a Reforma Protestante (século XVI) e a condenação de Galileu (1633) contribuíram ainda mais para o abismo entre a religião, até então vigente, e a modernidade: o teocentrismo vai cedendo aos poucos lugar para o antropocentrismo. Mas será o homem a medida para todas as coisas? Ele é sentido em si mesmo? O laicismo agora será um ultimato antirreligioso ou apenas separou religião do poder político?

Os “mestres da suspeita” (Nietzsche, Marx e Freud), embora não sendo autoridades religiosas e teológicas, reforçaram, paradoxalmente, a ideia da independência do homem quanto à religião e criticaram ferrenhamente o sistema moderno no tocante ao discurso religioso-cristão em nome de uma imanência histórica e exaltação da razão. A filosofia histórica e niilista de Nietzche apelou para a morte de Deus e acusou o cristianismo de fonte de sentido enganosa, que se volta para uma vida futura e rejeita a esta que, segundo defende, é a única existência. Na esfera sociológica, Marx acusou a religião de ser o “ópio do povo”, ou seja, alienação e ideologia que impede o progresso socioeconômico. Por fim, na linha psicológica, Freud reduziu religião à neurose obsessiva e universal ou ilusão de um desejo infantil. O cristianismo seria, nesse ponto de vista da “suspeita”, configuração religiosa desumanizante. Mas tal autonomia e liberdade da razão humana precisa ser, necessariamente, incompatível com o reconhecimento de Deus? O cristianismo é, de fato, uma religião desumanizante?

Após a Segunda Guerra Mundial (1940-45), a religião, sobretudo na Europa, foi perdendo força. O holocausto e a catástrofe causada pela ambição humana foi gerando um eclipse na religião “pós-moderna”, perguntou-se aonde estava Deus nesse momento crucial, mas o silêncio divino parecia imperar. A resposta de muitas religiões, sobretudo cristãs (lembre-se que na época do nazismo 54% da população alemã considerava-se protestante e 40% católica), culpava muitas vezes a filosofia, caracterizando-a de “antirreligiosa”, ou a ciência secular, pelo seu atrofiamento. Mas será que não caberia à religião (e aos crentes) fazer um mea culpa? Será que ela não tem fechado os olhos para esses problemas fundamentais do ser humano, assumindo posturas irrelevantes, indiferentes e até opressoras? Acreditamos que o melhor caminho seja o de assumir responsabilidades e firmar compromisso com a construção de um mundo novo e reumanizado.

Sem dúvida, a religião ganha e recupera credibilidade quando examina sua própria consciência do que quando se fecha em insensibilidade e autoritarismo. Quando o conteúdo da fé ou o ato de crer são substituídos por sua simples profissão e outras variações, sua crise se estabelece, porque vai se reduzindo à mera herança tradicional e não se torna uma fonte de vida. Quando isso ocorre, suas respostas não servem à humanidade, não tocam os problemas fundamentais do ser humano, mas a interesses particularistas. Portanto, a religião deve tocar a consciência das pessoas e aprofundar as respostas e atitudes que essa experiência proporciona, deve despertar a imaginação e lealdade nas pessoas, mas não fazê-las reféns de ideologias. Religião sem reflexão e prudência não é ligação ou autoconhecimento, é fanatismo, profanação e sacrilégio.

Tendo presente a diferenciação que fizemos entre religiosidade e seu conteúdo, a falta de fé pode revelar insensibilidade humana. Do mesmo modo, a fé, se desvinculada do discernimento, não passa de superstição, pois estamos nos referindo, antes de mais nada, a uma atitude e necessidade da alma humana de elevar-se acima de nosso próprio conhecimento. O grande conflito religioso que temos hoje em dia não é com a fé em si mesma, pelo contrário, tem sido os embates com credos religiosos vazios ou, muitas vezes, com certas posturas que fazem-nos concordar com a “morte de Deus”, elucidada por Friedrich Nietzsche (1844-1900). Esse Deus alheio, desinteressado e opressor tem que morrer mesmo, porque não é o mesmo Deus da vida, da Bíblia e dos Profetas. Em resumo, se uma religião fala mais alto pela “autoridade” do que pela voz da compaixão, sua mensagem perde o significado. Somente compreenderão a religião aqueles que podem sondar sua profundidade.

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Bibliografia consultada:

AZEVEDO, Cristiane A. “A procura do conceito de religio: entre o relegere e o religare“. Religare Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da UFPB, João Pessoa, 2010, pp. 90-96. | ERICKSEN, Robert P. e HESCHEL, Susannah. Betrayal: The German Churches and the Holocaust. Minneapolis: Augsburg-Fortress Press, 1999). | HESCHEL, Abraham Joshua. Deus em busca do Homem. Paulinas: São Paulo, 1975. | ______. Los Profetas: El hombre y su vocación. Supervisión de Marshall T. Meyer. Buenos Aires: Paidos, 1973. | ______. O Homem à procura de Deus. São Paulo: Paulinas, 1974. | ______. O Homem não está só. Paulinas: São Paulo, 1974. | LEONE, Alexandre G. Aimagem divina e o pó da terra: humanismo sagrado e crítica da modernidade em A. J. Heschel. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP: FAPESP, 2002. p. 19-49. | LIBÂNIO, João Batista. Eu creio, nós cremos: Tratado da Fé. São Paulo: Loyola, 2000. | MENDITTI, Carlos Henrique. Cristianismo em diálogo com o Ateísmo: As críticas do ateísmo humanista, suas interpelações e a fundamentação cristã como afirmação e desenvolvimento integral do humano. Tese (Doutorado em Teologia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. | PAULO VI. Constituição Pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo atual, 1965. | ZILLES, Urbano. Filosofia da Religião. São Paulo: Paulus, 1991.

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