Ícone da Transfiguração – Paróquia Universitária de Goiânia

Na Lectio Divina com a juventude da Arquidiocese de Goiânia da noite do sábado 12 de março de 2022, o arcebispo Dom João Justino de Medeiros Silva lançou um desafio à Paróquia Universitária, local aonde se realiza o evento: que a mesma desse a conhecer os significados de seu espaço litúrgico, com especial atenção ao grande painel central (ícone) da Transfiguração que ela abriga e, numa oportunidade, que a mesma realizasse um momento de espiritualidade em torno desses elementos. Atualmente, esta paróquia pessoal está sob pastoreio do Padre David Pereira de Jesus e é referencial para a juventude da Igreja local.

Acontece que, exatamente naquele dia, o evangelho dominical utilizado na Lectio nos transportava ao monte da transfiguração de Jesus, retratado naquela obra de arte por trás do presbitério (foto abaixo). Trata-se de Lucas 9,28b-36. Sabemos que na liturgia tudo fala, inclusive o espaço celebrativo. Nada é por acaso ou repetitivo. Detendo-nos à arte do ícone, apresentamos aqui alguns detalhes importantes que, inclusive, podem ajudar a rezar com a imagem.

 

SIGNIFICADO

A palavra ícone vem do grego eikón (εἰκών) que significa “imagem”. Nós também fomos feitos à imagem (tzelem, em hebraico) do Criador. Ser imagem de Deus significa ser seu “símbolo”, não apenas no sentido de “comparar”, mas da capacidade que recebemos de participar da vida divina. Os servos e servas do Senhor devem se assemelhar a Ele, precisamente em justiça e santidade. São Paulo nos apresenta Jesus como a perfeita “imagem do Deus invisível” (Cl 1,6). O ícone cristão é, portanto, uma janela para o mundo divino, ou como se costuma dizer, liturgia para os olhos, por isso é preciso olhos contemplativos para rezar com ele. A tradição cristã acreditou poder representar Jesus e até mesmo o Criador através da arte apoiando-se na resposta de Jesus a Filipe: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9). Todos(as) somos ícones divinos.

Foto: Rique Ferreira (2018)

TEMA

O assunto deste ícone é “Este é meu filho amado, ouvi-o” (Lc 9,35), letreiro inscrito em um círculo superior, à parte do painel, no meio de nuvens. Esta frase representa a voz de Deus que, segundo o texto, saía de uma nuvem que, por sua vez, confirma aquela teofania (manifestação de Deus) e eleição de seu Filho. No Primeiro Testamento, Deus costuma se revelar aos seres humanos nos fenômenos da natureza: água, vento, fogo, terremoto, neblina etc. (1Rs 19,9-14). No Segundo Testamento, Deus se revela especialmente através de seu Filho, o Verbo encarnado. Em um segundo momento, temos o conteúdo da conversa entre Jesus, Moisés e Elias. Eles falavam do êxodo que Jesus iria enfrentar até sua morte em Jerusalém (Lc 9,31).

ELEMENTOS

  1. Monte: na Bíblia, a montanha e os lugares altos são sinônimos de encontro e presença (shekináh) de Deus. Neste ícone, nota-se imediatamente a presença de rochas indo da parte inferior ao centro, de forma elevada e cor amarelada. Recordemos que o diabo também levou Jesus para o alto (Lc 4,5.9), simbolizando ali a tentação. A geografia bíblica é composta em grande parte de regiões montanhosas, o que favorecia a oração, o silêncio e recolhimento. É por isso que inúmeros santuários e mosteiros foram sendo construídos em altos, serras ou montes;
  2. Árvores: embora poucas e discretas, ao redor do monte. Os desertos bíblicos não são cobertos de areia, como o Saara, mas regiões rochosas em grande parte. Ali é possível contemplar, em alguns períodos do ano, sua verde relva. Lembram a vocação cristã de resistir aos desafios e produzir bons frutos, mesmo que em meio aos desertos da vida (Jo 15,16);
  3. Dois céus: Na Bíblia não existe apenas um céu. O céu físico é representado aqui pelo azul, envolvido de algumas nuvens como plano de fundo. Mas há um outro céu na imagem, o dourado em torno de Jesus. Na iconografia, o céu espiritual é representado pelo dourado, porque não se trata de coisas naturais, mas de glória. É como se a presença de Jesus ali rasgasse o céu físico, como ocorreu no seu batismo (Mc 1,9-11). O contorno amarelo em Jesus é um acesso ao Reino celeste do qual Ele afirma “Eu sou a porta” (Jo 10,9);
  4. Glória: Moisés e Elias “apareceram revestidos de glória” (Lc 9,33) e os apóstolos “viram a glória de Jesus” (9,34). A glória é a presença de Deus que emudece as palavras, deixa os discípulos extasiados: “Pedro não sabia o que estava dizendo” (9,33). A consequência de experimentar a glória de Deus é o sentido do inefável, isto é, do envolvimento em seu mistério. Karl Ranher, um dos grandes teólogos do Concílio Vaticano II afirmou: “O cristão do século XXI ou será místico ou não será cristão”, quer dizer, é urgente cultivar uma experiência de Deus autêntica, que brote do coração e não do automatismo;
  5. Ternura: os personagens não estão com semblantes tristes ou eufóricos, mas sóbrios. Geralmente, os personagens bíblicos e santos(as) aparecem assim na grande maioria dos ícones. Tal expressão simboliza o equilíbrio espiritual, a maturidade de quem caminha com Deus. O semblante e olhar de Jesus é imperturbável, sereno e transcendente. Ele está “encarando” quem contempla o ícone, é o único que olha defronte;
  6. Cristocentrismo: Cristo é, literalmente, o centro deste ícone. Tudo se volta para ele, os dois profetas, os apóstolos e até mesmo o monte e as nuvens. Se olharmos atentamente, o formato dos profetas e discípulos forma uma outra elipse ao redor de Jesus, convergindo para Ele, que é “o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim” (Ap 22,13);
  7. Cajado com alforje: abaixo de Tiago, um cajado deixado de lado, mostra o abandono do mundo e confiança nas promessas de Jesus: “Não leveis ouro, nem prata, nem cobre nos vossos cintos, nem alforje para o caminho, nem duas túnicas, nem sandália, nem cajado” (Mt 10,9-10), representa também o desapego às nossas falsas seguranças e a adoção da escuta de Deus como o mais urgente ministério;
  8. Cava: os ícones costumam trazer uma cava nas laterais, que pode ser “cavada” ou “escrita” a fim de favorecer o formato de janela em suas bordas. É exatamente isso que significa um ícone, uma janela para o mundo espiritual. No caso do ícone de nossa capela, ele foi escrito (não se diz “pintar” para um ícone, mas “escrever”, porque, assim como a Bíblia é a Palavra de Deus escrita e música sacra é a Palavra de Deus cantada, o ícone imita essa Palavra em cores, formas, linhas e sentimentos);
  9. Os quatro animais: embora não apareçam na referida passagem, o ícone está ladeado pelos quatro animais citados em Ezequiel 1,5.10 e Apocalipse 4,7-8, que mais tarde foram interpretados pelos santos Irineu de Lion, Agostinho, Jerônimo e Gregório Magno como sendo os quatro evangelistas, de acordo com o início de cada um dos Evangelhos: leão (Marcos), touro (Lucas), homem (Mateus) e águia (João). Ora, João está presente na cena, um dos que levariam o Evangelho “aos quatro cantos da terra” (Ap 7,1), portanto, também nos lembram os quatro pontos cardeais e a certeza da presença de Jesus no mundo: “E sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e a Samaria, e até os confins da terra” (At 1,8).

PERSONAGENS

  • Jesus (ao centro): Está de pé, o que significa prontidão e, ao mesmo tempo, de mãos abertas, que significa intercessão. É a mesma postura do sacerdote enquanto profere orações e invoca o nome de Deus durante as celebrações. Lembra a intercessão de Moisés contra os amalecitas e em favor de Israel (Ex 17,8-16). A cor branca de sua veste é predominante e a leveza de suas linhas revela um profundo abandono aos projetos do Pai. O branco simboliza basicamente a luz – a primeira criação de Deus -, e o batismo;
  • Pedro (ao centro, abaixo de Jesus). O único apóstolo de barba, o que representa idade e sabedoria. É o chefe dos apóstolos, o único que aparece no ícone falando com Jesus, pois o olhar voltado ao Mestre e o gesto das mãos, quase imitando as de Jesus indicam o diálogo “Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias” (Lc 9,33);
  • Tiago (canto inferior direito): nos momentos mais íntimos de Jesus, apenas esses três estavam com ele: Pedro, Tiago e João. A mão direita levantada, sinal do orador em público, parece pedir a fala, mas o êxtase lhe é maior que sua ousadia;
  • João (canto inferior esquerdo): o mais moço dos discípulos, está entre o sono e a vigília, estado de alma na qual Deus pode falar ao coração e à consciência, como falou com Samuel (Sm 3). Parece tentar se levantar, é o que mais se abandona ao chão, com corpo levemente esticado. Experimenta, assim como os outros dois apóstolos, alegria e tremor (Lc 9,34);
  • Moisés (lado esquerdo de Jesus): apresenta a Jesus as tábuas da Lei com os Mandamentos. Claramente, esta cena representa o encontro do Primeiro com o Segundo Testamento, ou da Lei com o Evangelho. A Bíblia hebraica também é chamada de Tanakh, por causa das iniciais de seu conteúdo: Toráh (lei), nebiîm (profetas) e ketuviîm (escritos). Ou seja, temos diante dos nossos olhos a Bíblia inteirinha em uma imagem, porque Jesus é o próprio Evangelho, a Palavra encarnada ou o “auto-reino”: “o Reino de Deus está no meio de vós” (Lc 17,21);
  • Elias (lado direito de Jesus): apresenta o pergaminho com os escritos dos profetas. Naquela época, a Bíblia ainda não tinha sido completada, então os judeus dispunham apenas da Lei e dos Profetas. Faz-nos lembrar do que disse Jesus: “Não penseis que vim abolir a lei e os profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento” (Mt 5,17). Sabe-se que Elias devia ser o precursor do Messias (Ml 3,23; Sr 48,10), por isso é identificado com João Batista (Mt 17,12). No Calvário pensaram que Jesus chamava por Elias, porque exclamou em aramaico o Salmo 21/22: “Eli, Eli, lamá sabachtáni” (meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes? – Mt 27,46). Até hoje, quando um judeu piedoso celebra sua páscoa, deixa reservada uma cadeira e uma taça para Elias, pois o profeta Malaquias profetizou seu retorno no tempo da chegada do Messias (Ml 3,23).

LUGAR

Os evangelhos omitem a localização exata desta “alta montanha”, mas a tradição cristã rapidamente a identificou com o Monte Tabor, há 17 km a oeste do Mar da Galileia, aonde há uma basílica dedicada à Transfiguração, iniciada no século IV ou V, mas destruída posteriormente e reinaugurada em 1924. Na liturgia, a festa da Transfiguração é celebrada em 6 de agosto desde o século V. O que podemos afirmar com mais segurança é que, neste caso, trata-se de um “novo Sinai”, para aonde afluirão as nações (Is 2,2-3; Dn 9,16).

CORES

  • Branco: esta cor é predominante no painel e representa a luz, por isso é a cor do reino dos Céus, da santidade e simplicidade. O texto é afirmativo ao dizer que “suas vestes tornaram-se de fulgurante brancura” (Lc 9,29), nos remetendo ao batismo e também a uma visão de Daniel: “e um ancião sentou-se. Suas vestes eram brancas como a neve; e os cabelos de sua cabeça, alvos como a lã” (Dn 7,9). Nesse ícone, tudo e todos recebem o branco. Na igreja oriental e ortodoxa, conhece-se o termo “fotofania”, a emissão da luz em um fato manifestado. A luz é a primeira criação de Deus (Gn 1,3). João foi a única pessoa em toda a Bíblia que ousou falar sobre a natureza divina: O Pai é amor e luz (1Jo 1,15) e Jesus é a luz do mundo (Jo 8,12). Diante de sua presença, os seres e as coisas são transfiguradas. Não há mais trevas para quem Dele se aproxima;
  • Amarelo: o amarelo, o ouro e o sol simbolizam a união da alma com Deus, o que muitos(as) autores(as) cristãos(ãs) chamam “mística”; também indica a luz revelada aos gentios. O dourado simboliza a glória e realeza divina, presente na auréola sobre Jesus e na luz em sua volta. No caso de nosso ícone, o amarelo se predomina na montanha, mas numa tonalidade menor;
  • Verde: no cristianismo, é símbolo da regeneração da consciência, assim como no Tempo Comum da liturgia; é a cor dos profetas, como se pode ver na veste de Elias. Na Bíblia, se diz que de Deus emanaram três esferas concêntricas (Ez 1,26; Ex 24,9-10): uma vermelha (amor), uma azul (sabedoria) e a outra verde (criação). Em João, o verde de sua veste simboliza a juventude e vitalidade, assim também como em muitas representações da jovem Theotókos (Mãe de Deus) na Anunciação e no Emanuel (Menino Jesus);
  • Vermelho: simboliza incandescência e atividade. É a cor mais viva nos ícones, gera movimento aos nossos olhos, como chamas de fogo. Representa o amor, a realidade celeste, o Espírito Santo (fogo purificador), calor, paixão, energia, presente na túnica de Moisés e no manto externo de João. Ilustra também a ressurreição da carne, o martírio, o sofrimento, a vitória sobre a morte, cor mais expressiva na túnica de Tiago;
  • Azul: é a cor da criação, das águas, símbolo do caminho da fé, do infinito, de um outro mundo eterno. Na túnica de Pedro, simboliza a verdade e a sabedoria, aquele a quem Jesus adverte: “confirma a fé de teus irmãos” (Lc 22,32);
  • Marrom: resultado da mistura do verde, azul, vermelho e contém preto, simbolizando tudo o que é terreno. No entanto, também é a cor da humildade, porque quando próximo do preto parece uma cor viva, e quando próximo às outras cores, tem tonalidade morta. É a cor que muitos ascetas e monges adotaram em suas vestes, representando a renúncia, a pobreza e as alegrias da vida terrena. É predominante no manto superior de Tiago e também em João Batista.

TEOLOGIA

  • Jesus se encontra com dois personagens já falecidos há séculos, mas o judaísmo admite a assunção tanto de Moisés (Ap 11,3-6) como a de Elias (2Rs 2,11). Os grandes personagens bíblicos que gozam da intimidade de Deus são arrebatados, “pois não haveis de me deixar entregue à morte, nem vosso amigo conhecer a corrupção” (Sl 15,10);
  • Lucas pensa aqui em Jesus não como o “novo Moisés”, como retrata Mateus, ou como o “Messias oculto” de Marcos, mas o contempla em sua experiência pessoal com o Pai;
  • Oração é intimidade, dom da amizade e permanência com Deus. Quem não gosta de rezar, não serve para ser discípulo de Jesus, é um galho seco da videira (Jo 15,2);
  • A montanha pode ser nosso coração, nossa escola, nosso trabalho, nossa casa… É o lugar onde Deus se revela, é onde posso experimentá-lo pessoal e comunitariamente;
  • São João Paulo II, no documento sobre a Vida Consagrada, alargou o horizonte da vida espiritual a todas as pessoas de bem, e afirmou que

a vocação à santidade só pode ser acolhida e cultivada no silêncio da adoração na presença da transcendência infinita de Deus: Devemos confessar que todos precisamos deste silêncio repleto de presença adoradora. […] Ver Deus significa descer do monte com um rosto tão radiante ao ponto de sermos obrigados a cobri-lo com um véu” (cf. Ex 34,33) (VC, 38);

  • O referido Evangelho ou cena do ícone é um antegozo da ressurreição, uma forma de experimentar aqui na terra o que se sucederá eternamente no Reino Celeste: alegria, paz e felicidade. Por isso que, propositalmente, a liturgia católica o inseriu no tempo quaresmal, porque a vida de Jesus não comporta apenas morte e cruz. Assim também nossa vida é um misto de alegrias, tremores e esperanças;
  • Muitas vezes não contemplamos a glória de Deus por causa de nossa lentidão e sono para com as coisas Dele e agilidade para as coisas terrenas. Não levamos Deus a sério. Estar com sono espiritual é não ir além do “Getsêmani”, isto é, não experimentar o poder da ressurreição (Lc 22,45);
  • O verbo “escutar” na Bíblia dá no mesmo que obedecer. Ser cristão não é viver de êxtases, não podemos viver uma fé desencarnada! Quando os discípulos ficaram extasiados durante a ascensão de Jesus, foram advertidos pelos “anjos”: “por que estais aí a olhar para o Céu?” (At 1,11). É preciso descer da montanha e ser no mundo as testemunhas de Cristo, sermos mediadores de experiências espirituais, porque uma vez diante de Jesus e o comungando, a pessoa se torna o que os ortodoxos chamam de teóforo (portador de Deus), ou nas palavras de Santo Irineu, capax Dei (capaz de Deus).

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