Minhas inspirações

Ganhei minha primeira Bíblia aos dez anos de idade quando cursava a Classe de Aceleração II, o equivalente à quarta série do ensino fundamental em 1999 na Escola de Ensino Fundamental Padre Arimateia Diniz (UV8), localizada no bairro Conjunto Ceará, em Fortaleza. Lembro exatamente o nome da professora que me entregou, Estéphane, que estava substituindo minha professora Vilane. Na verdade, não era a bíblia completa, mas um exemplar do Novo Testamento com Salmos e Provérbios distribuído pelos Gideões Internacionais, a famosa bíblia em miniatura de capa azul, assinada e datada por esta professora substituta. Fiquei muito feliz, pois embora se tratasse de uma versão protestante, eu poderia finalmente chamar de minha.

Nesta época, embora católico e coroinha, comecei a frequentar igrejas evangélicas com minha irmã mais nova, Aparecida, chegando a ajudar na escolinha de crianças, depois em cultos de jovens, gincanas, ministério de música e evangelismo, carregando até hoje grandes amizades. Nesse tempo, também vivi minha primeira paixão na adolescência, mas por N motivos não prosseguimos. Hoje, quase toda minha família é protestante, meu pai e 10 dos meus 11 irmãos, restando apenas eu, minha mãe e uma irmã de católicos.

Então, desde criança apaixonei-me pela Bíblia. Até hoje guardo esse exemplar com muito carinho, conservo e recordo todos os grifos. Com ela, vivi inúmeros momentos de inspiração, e relembro a famosa afirmação do filósofo protestante dinamarquês, Sören Kierkegaard: “A Bíblia é um livro perigoso. Dou o dedo, ela quer a mão. Dou a mão, ela me quer inteiro”. Para mim, a palavra de Deus não é apenas texto, mas uma grande liturgia que cria e recria o homem, o mundo e o universo, a única palavra que cumpre o que diz, e que precisa ser mais criticamente conhecida em suas entrelinhas.

Gaëtan Charles Camille Ghislain Jean Marie Minette de Tillesse era o nome de batismo daquele que no Brasil quis ser conhecido e chamado apenas de “Padre Caetano”. Ele nasceu em 7 de junho de 1925 em Nederokkerzeel, há poucos quilômetros da capital Bruxelas. No ano seguinte a seu nascimento, muda-se com a família para a capital, permanecendo lá até o ano de 1941. Em 1944 seu país torna-se refém dos nazistas na Segunda Guerra Mundial, onde ele se ofereceu para combater como soldado belga ao lado de países aliados contra Hitler, retornando em outubro de 1945 e, diante do caos, sente o apelo de Deus a uma entrega total e incondicional de si, ingressando e dedicando 22 anos de silêncio, oração, trabalho e estudo no mosteiro Cisterciense de Orval, localizado no sul do país, na fronteira com a França. Na vida monástica, serviu como cantor, jardineiro, bibliotecário, pregador de retiros para leigos e padres e foi professor. Seus superiores imediatamente notaram  seu amor e dedicação pessoal ao estudo da Bíblia, enviado-o à Roma em 1952 para cursar licenciatura em Teologia na Universidade Gregoriana e em Bíblia no Pontifício Instituto Bíblico. Em 1956, retorna de Roma ao mosteiro e ensina Bíblia aos seus colegas monges por 11 anos. No entanto, diante do Concílio Vaticano II na década de 1962-5, sente que Deus quer algo novo, que aquela riqueza espiritual do mosteiro deveria ser partilhada com os mais pobres, precisamente na América Latina.

Em 28 de março de 1928 chega ao Brasil com seu colega monge, Norbert Gorrissen, carinhosamente acolhidos no Mosteiro de São Bento (Salvador/ BA), onde pôde ensinar Bíblia na Universidade Católica de Salvador e desenvolver trabalho pastoral na favela do “Pau Miúdo”. Lá, ouve falar no Grande Pirambu, situado em Fortaleza, que na época, era uma das maiores favelas da América Latina, resolvendo se mudar para a capital do Ceará em novembro daquele mesmo ano. Em Fortaleza, torna-se padre diocesano, desligando-se do mosteiro. Fundou a Paróquia de Cristo Redentor (1969), Comunidade Infantil Cristo Redentor (1969), Grupo de Escoteiros Cristo Redentor – 13º GE do Ceará (1969), Centro Comunitário Cristo Redentor (1974), Bairro Cristo Redentor (1974), foi precursor do movimento da Renovação Carismática Católica (RCC) no Ceará (1975), fundador e editor da Revista Bíblica Brasileira – RBB (1984-2005), fundador do Instituto Religioso Nova Jerusalém (1981), sendo idealizador de inúmeros benefícios sociais para a comunidade, como escolas, construção de casas populares, rede de esgoto, iluminação pública, segurança, saúde etc. Recebeu comenda de “Benfeitor da Criança da Cidade” pela Prefeitura de Fortaleza (2002), título de “Cidadão Cearense” pelo Governo do Estado do Ceará (2003), bem como várias outras homenagens. Em nosso chão, adotou várias crianças abandonadas, muitas das quais foram deixadas na porta de sua casa e que receberam seu sobrenome; montou com ajuda do mosteiro de Orval, Universidade belga de Louvaina, amigos e familiares, uma das maiores bibliotecas especializadas em Sagrada Escritura da América Latina, localizada no Instituto Nova Jerusalém, que hoje recebe seu nome.

Tive a feliz e, ao mesmo tempo, difícil oportunidade de estar com ele no momento de seu falecimento, ocorrido em 1º de janeiro de 2010 em Fortaleza, também de ser seu primeiro biógrafo, com inúmeras postagens e canais em meio eletrônico e a publicação de “Um Monge Missionário: Vida e Obra de Pe. Caetano Minette de Tillesse” (2016), pela editora carioca Cenáculo Universal, trabalho reconhecido em 2017 pela Assembleia Legislativa do Ceará e Câmara Municipal de Fortaleza, com placa e certificado. Por fim, a feliz ventura de contactar monges, amigos e familiares, e de visitar lugares importantes de sua vida em terras belgas em julho de 2019. Seu amor pela palavra de Deus e pelos pobres continua contagiando gerações, sua mística e humanismo deixaram marcas profundas e indeléveis no Brasil, sendo mencionado no site “Patrimônio Belga no Brasil” (Belgian Club), com o conhecimento de embaixadores e autoridades da Bélgica no Brasil.

A. J. Heschel – Jewish Telegraphic Agency

Meu primeiro contato com o pensamento deste rabino, filósofo e teólogo judeu se deu na Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) no ano de 2012 quando, no curso de filosofia, a professora Dra. Aíla Luzia Pinheiro de Andrade lançava-nos o desafio de participarmos do grupo de estudos “Consciência religiosa e condição humana em Abraham Joshua Heschel” do qual, como fruto, obtivemos três trabalhos monográficos bem sucedidos. Dentre os tais, minha primeira monografia “O pensamento situacional na obra ‘Deus em Busca do Homem’ em diálogo com a razão moderna” (2013) e, posteriormente, minha conclusão da teologia: “O mundo interior dos Profetas Bíblicos e a vocação do Homem em Abraham Joshua Heschel” (2019).

Este teólogo e humanista polonês Abraham Joshua Heschel (Varsóvia, 1907 – Nova York, 1972), foi influente erudito judeu, oriundo do círculo dos hassidim, corrente de mística e piedade judaica, do qual é ascendente de ilustres mestres, como o rabino Israel ben Eliezer (1700-1760), mais conhecido como “Baal Shem Tov” (“possuidor do Bom Nome”), fundador deste movimento ortodoxo hassidista, e do rabino Menahem Mendel de Kotzk, falecido em 1859. Estes são os dois mestres dos quais Heschel declara ter influência. O autor tem em seu pensamento um grande pressuposto: o amor de Deus que procura o ser humano, no qual Deus é concebido como o sujeito supremo que envolve toda realidade, superando aquela visão que tende conceber Deus como mero objeto de reflexão. Será mais conhecido durante sua vida acadêmica nas universidades de Berlim e Frankfurt, chegando a ser discípulo e sucessor de Martin Buber no Centro de Cultura Judaica de Frankfurt a partir de 1937. Sob pressão nazista, é obrigado a abandonar a Alemanha e retornar à Polônia, mas perde seus familiares em Varsóvia, tendo que migrar para Londres e, posteriormente, para os EUA em março de 1940 numa difícil, mas ao mesmo tempo, brilhante situação, pois daqui surgirão grandes obras como O Homem não está só e O Sábado (1951), Deus em busca do Homem (1952) e O Homem à procura de Deus (1954), trazendo algo inovador, pois vai de certo modo rompendo com o posicionamento tradicional do hassidismo frente à modernidade e com os cientistas da religião num contexto pós-guerra. Tais obras serão também aqui utilizadas como nossos referenciais.

Segundo Baccarini (2002), é com este teólogo humanista que se inicia o movimento teológico denominado “Pós Auschwitz”, pois a iniciativa deste judeu sobrevivente da shoáh em retomar o pensamento sobre Deus, embora num contexto traumático e frustrante de guerras e revoluções nas quais se falava na “morte de Deus”, mostrou um grande otimismo e esperança na humanidade, propondo um reencontro com a dignidade humana e sacral do ser humano.

Abraham Joshua Heschel escreve como um filósofo ocidental, um scholar judeu, um rebe hassídico e como um poeta que assume uma inabalável confiança no amor de Deus pela Humanidade. E também ele sublinha a compaixão dos profetas hebreus e seu radicalismo ético (KAPLAN apud LEONE, 2002, p. 204).

Em 1936 conhece Martin Luther King, com quem manteve amizade pessoal, chegando a marchar pacificamente em favor da liberdade dos negros, dos direitos humanos, do diálogo inter-religioso, da justiça e da paz. Conhece uma conterrânea, Sylvia Straus, com quem casa em 1946 e tem uma filha, Susannah Heschel, que mais tarde se tornaria sua maior biógrafa. Através do Cardeal Augustin Bea (1881-1968) encontra-se pessoalmente com o Papa Paulo VI, ambos motivados pelos trabalhos do Concílio Ecumênico Vaticano II em prol do ecumenismo e diálogo inter-religioso, fato que fez com que ele sofresse a desaprovação de seus correligionários mais conservadores. Acredita-se que suas ideias estão fortemente presentes na Declaração Nostra Aetate, sobretudo em seu quarto número, datada de 28 de outubro de 1965, nas quais se põe fim em um mal entendido entre cristãos e judeus que perdurou por quase dois milênios. A Igreja Católica, de forma oficial, inocentava os judeus em geral pela crucifixão de Cristo, missão que Heschel empreendeu e entendeu como ética religiosa. Vemos claramente como a teologia judaica vai oferecendo luzes ao pensamento cristão no contexto pós-guerra.