O cristão deve se meter em política?

Os brasileiros costumam dizer que religião e futebol não se discutem, enquanto somos o segundo maior país “cristão” do mundo, atrás apenas dos EUA, e o mais “católico” (172,2 milhões= 26,4% de todo o mundo, segundo Anuário Pontifício de 2017), e também o “país do futebol”. Dito isso, estaríamos jogando os dois assuntos para uma aposta, uma coisa pronta, que você só terá que optar, e que vença o melhor. Porém, diferentemente de uma aposta, a religião é uma proposta. Para começo de conversa, sinalizamos que existe uma diferença crucial entre religião e fé, como já abordamos em artigo anterior (para acessá-lo clique aqui).

Acontece que o silêncio para com alguns temas que consideramos difícil de assimilar pode dar margem a distorções, esquecimentos ou mesmo discursos de ódio e indiferença. É o mesmo que acontece quando mencionamos ou associamos religião e política. De um lado, temos pessoas saudosistas que torcem para o retorno do teocentrismo (teoria onde Deus é a medida de todas as coisas numa sociedade), vigorada até o século XVII com o advento do Iluminismo. Na contramão, temos aqueles que julgam não dever misturar as duas coisas.

Se política pode nos parecer um tema causador de fadiga ou estresse, imagine se associado à religião. Então, é preciso restabelecer os problemas. A verdade é que nossa “fadiga política” não parte dela em si mesma, mas de um contexto marcado por corrupção, ideologias e partidarismos doentios que só aumentam o descrédito, incômodo e desinteresse das pessoas. Do lado religioso não é diferente: um ambiente onde se cultiva o fanatismo, fundamentalismo e dogmatismo só favorece o aumento da desconfiança das pessoas para com as religiões e, consequentemente, com qualquer expressão de espiritualidade. Então, o problema desta última também não é com sua natureza, credo ou finalidade, mas com certas posturas assumidas, o que pode causar drásticas repercussões.

Aristóteles definiu o homem como “animal político”. Posteriormente, Platão, influenciado por pensadores anteriores, desenvolveu uma definição do homem como ser político associado à ética, onde uma de suas mais importantes obras será A República, em grego Πολιτεια (politéia) que, traduzindo para o latim fica “res publica”, ou seja, o sistema de vida na pólis (cidade). Vale lembrar que, na época, a vida social também acontecia no sistema teocrático, ou seja, orientada à vida do panteão dos deuses gregos. O direito civil se inspirava no direito dos deuses. Vemos que, desde os tempos mais antigos, política e religião andaram juntas. No mundo judaico, não se divide fé e vida social, pelo contrário, são realidades interdependentes, uma fusão de piedade pessoal e ética. Assim foi com o cristianismo, sobretudo a partir do século IV, onde a religião se institucionalizou.

Umas das grandes crises entre política e religião se conheceu no cisma entre Oriente-Ocidente (1054), na Reforma Protestante (1517), onde  Lutero, em suas 95 teses, questionava a comercialização das indulgências. Nesse mesmo período, também ocorria as já conhecidas tensões entre Igreja e o Sacro Império Romano-germânico, que perdurou até 1086, o que ajudou a levar à frente as ideias políticas de Martin Lutero, este amparado pela coroa alemã. Mas o estopim dessa ruptura entre poder divino e temporal se deu na transição da Idade Média para a modernidade, onde o Iluminismo (séc. XVII) questionou as visões e posturas da Igreja em suas relações com o Estado. Então, o sistema teocrático dava lugar para o antropocentrismo, ou seja, o homem agora moldando e conduzindo secularmente o poder público, sem aval do clero.

Desde então, estabeleceu-se o abismo entre religião e política, depois entre religião e ciência, sobretudo após a condenação de Galileu Galilei (1633). Como vemos, antes a crise religiosa foi para com a política e ciência. Depois das duas Guerras Mundiais, com a imagem do ser humano mutilado, parece que a pergunta agora é sobre o tipo de conhecimento mais válido: o que parte de ideias/ conceitos ou aquele que parte da situação humana. Desde então, as pessoas estão cansadas de muito discurso e sermão, elas buscam inspiração, atitudes concretas, histórias de vida. Menos discurso, mais gestos, menos exaustão, mais objetividade. É aqui que entra o poder da política, que quando assumido em favor do bem comum, pode transformar-se, como nas palavras do Papa Francisco, numa forma privilegiada de exercer a misericórdia.

O Concílio Vaticano II, com seu ideal de aggionamento (atualização), afetou as bases e poeiras da Igreja. Aqui na América Latina, como uma de suas grandes respostas às necessidades do continente, ocorreu a Conferência Episcopal (CELAM) de Medellin em 1968, dando restart à teologia da libertação, movimento teológico que faz uma leitura da realidade a partir de seu contexto econômico, político e social. Embora ainda complexo, dedica atenção especial para as realidades temporais, confrontando-as, ainda mais se estas fomentam opressão e injustiça. A salvação é vista em contexto sempre coletivo e engajado, e sua maior premissa está na opção preferencial pelos pobres, os principais destinatários do Evangelho. A tensão entre esse movimento e o magistério da Igreja deve-se não necessariamente às suas bases teológicas, mas a algumas de suas correntes que, na visão da hierarquia, enveredaram viés materialista, fomentando luta de classes, provocando, assim, acento numa escatologia terrestre, comprometendo a transcendência divina.

Por isso, é importante o pesquisador ou fiel se ater sobre a doutrina social da Igreja. Desde o Papa Leão XIII, em sua encíclica Rerum Novarum (“A sede de inovações”) datada de 1891, que tratou sobre a situação dos operários, a Igreja procura dar atenção às questões sociais na modernidade. Para exemplificar, esta mesma carta tratou das causas de conflitos sociais, socialismo, direito à propriedade, bens comuns, relação família-Estado, relação Igreja-sociedade, relação patrão-operário, greves, salários, bens da alma, corporações e, o mais importante, a caridade apresentada como solução definitiva. Desde a Idade Média, na estreita amizade entre sacerdócio e Império, a Igreja se considerou modelo de “sociedade perfeita“, embora saibamos que tal relação nem sempre se sucedeu de forma harmoniosa.

Como sabemos, a Igreja em sua história não tratou apenas de questões da alma ou sacramentos. A ela se deve a criação de inúmeros hospitais, asilos, dispensários, leprosários, escolas, universidades, sobretudo numa época onde o poder público não adotava tais serviços como sua obrigação. “Assim na terra como no céu” ou “Venha a nós o vosso Reino” (Mt 6, 10), esta mesma Igreja procurava atuar como sinal visível do Reino de Deus no mundo, não provocando com isso distorções em seu sentido escatológico, pois esse Reino no mundo, como diria Santo Tomás de Aquino, se entrelaça à humanidade regenerada pela graça, “é o reino da virtude, é o reino da santidade, é o reino do Evangelho”, ou, nas palavras de Pio X: “Não há verdadeira civilização sem civilização moral, e não há verdadeira civilização moral senão com a Religião verdadeira” (Carta ao Episcopado Francês, de 28-VIII-1910, sobre “Le Sillon”).

Como se vê, o cristão não é uma espécie de ser à parte da humanidade, e a política não deve ser reduzida à uma agenda de cabos eleitorais, mas como a arte de fazer o bem comum. A premissa de que cristão não deve se meter em política soa mais como tática ideológica, pois o mundo sabe da força política que os cristãos tem em mãos, além do poder de voto. É também maldade colocar pessoas religiosas a escanteio do mundo político. Seria antidemocrático e desonesto negar esse direito e dever em país onde metade da população se denomina católica, 31% evangélica, 3% espírita, 2% umbanda/candomblé, 2% outra(s) e apenas 1% ateia (confira pesquisa Datafolha Dez./2019). Política e religião não se discutem? É por causa desse pensamento que existe tantos políticos corruptos e falsos profetas sustentados e aplaudidos sem qualquer discernimento. Realmente, não se “discutem”, mas se refletem, se aprofundam.

Também aqui não fechamos os olhos aos inúmeros descasos e escândalos de figuras públicas que se autointitulam cristãos(ãs) e vem assumindo, infelizmente e cada vez mais, posturas insensíveis, irrelevantes e agressivas, que desconhecem e se afastam dos princípios do Evangelho, que usam o Nome de Deus em vão e tem dado verdadeiro tutorial de como pisar em casca de banana, seduzidos pelas tentações e regalias que esta função lhe oferecem. Alguns destes se sentem muito vítimas e perseguidos pelo sistema, evitam o diálogo e o olho no olho. São pessoas que não representam a religião pura. Eles governam “para si mesmos” (Ez 34,2) ou para um pequeno grupo, são lobos em pele de cordeiro. Foi a esse tipo de pessoa que Jesus profetizou desconhecer:

Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos. Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber; era peregrino e não me acolhes­tes; nu e não me vestistes; enfermo e na prisão e não me visitastes (Mt 25,41-43).

A atual crise, em todas as esferas, que a humanidade de hoje está a presenciar, só evidencia a carência que temos de autênticas lideranças políticas e religiosas, ou seja, ausência de figuras capazes de despertar e cultivar a imaginação e lealdade das pessoas no mundo contemporâneo, pessoas que, sabiamente, jamais desvinculem fé e vida. As crises e guerras intraestatais, visões extremadas e reducionismos, o radicalismo ou laxismo, não podem continuar a impedir a humanidade de caminhar. Os cristãos também precisam se educar politicamente se não desejam continuar a ver os valores do Evangelho irem pelo ralo, o aumento da indiferença religiosa, o ataque aos seus templos e fiéis, a não concretização do Reino de Deus. Não se trata de retorno à Idade Média, mas de uma correta leitura da identidade e missão cristã, sem confundi-las.

A política brasileira parece ter se reduzido à briga “direita x esquerda”, nada mais tendo a dizer ao país, numa eterna torcida “Fla x Flu” enquanto nosso pobre povo tenta se alfabetizar e se recuperar de um histórico explorador e desigual. Tem trocado o encontro, o sentir na pele e a presença em seus ambientes críticos por uma infindável guerra virtual de “hastags” afrontosas. Somos um dos países mais “cristão” do mundo e, ao mesmo tempo, contado entre os mais corruptos, sem passos muito sensíveis de queda neste histórico. Algo não está certo, falta profetismo por parte de “todas as pessoas constituídas em dignidade, para que governem com justiça”, pois “a religião pura e sem mácula aos olhos de Deus e nosso Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições, e conservar-se puro da corrupção deste mundo” (Tiago 1,27).

Para isso, um mea culpa não basta, é preciso reparação, é preciso suscitar uma geração de cristãos formados e esclarecidos de seu papel religioso e social, “Antes de tudo, recomendo que se façam súplicas, orações, intercessões e ações de graças por todos os homens; pelos reis e por todos os que exercem autoridade, para que tenhamos uma vida tranquila e pacífica, com toda a piedade e dignidade” (1 Timóteo 2,1-2). E vale lembrar que autoridade para Jesus nunca é autoritarismo, mas sabedoria e serviço, é a mística do “lava-pés”. Nossos homens e mulheres públicos precisam aprender isso, e o povo a escolher representantes “sábios, criteriosos e experientes” (Deuteronômio 1,13), sem jogar toda a responsabilidade para o governo e desassumir seu protagonismo.

Portanto, o cristão deve se envolver na política, mas com consciência, liberdade, respeito aos valores éticos, morais e democráticos, deve fazer com o que o bem comum atinja o maior número de pessoas possível, deve lutar contra a corrupção e toda forma de exploração, injustiça, desigualdade, sendo sal da terra e luz do mundo, fermento bom na massa, antecipando dessa forma o reino de Deus, que já está em nosso meio. Sem a política, entendida em seu sentido original, é praticamente impossível atingir esses fins apresentados.

 

 

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