O êxtase ou transe profético

O êxtase religioso é apontado entre os fenômenos mais relevantes e atraentes para os psicólogos e historiadores, ao ponto de evidenciar uma tendência que quer abordar esse fenômeno como universal, elaborando, posteriormente, uma teoria que provocou duas correntes: uma que reduziu o profetismo bíblico e muitos fenômenos religiosos a um “denominador comum”, classificando-os como objetos de primitivismo. Já a outra visão ofereceu uma “explicação psicológica” à uma realidade que, até então, parecia enigma. Para o “consolo” dos religiosos, a inspiração profética, foi, então, considerada como uma forma de êxtase ou poesia.

Mas o que acontece é que tais visões dessas ciências comportamentais não conseguiram atingir a natureza e conteúdo espiritual do êxtase religioso ou profético, acabaram por trocar o meio pelo fim, colocando a “carroça à frente dos bois”, pois além de analisarem esse objeto “à distância”, muitas vezes sem consultar o saber religioso e teológico, podem ter agido clandestina e preconceituosamente ao considerar o assunto questão encerrada, como se pode constatar adiante.


Para os gregos, a palavra ekstasis era empregada para designar o fenômeno de transe no qual a alma se desvinculava do corpo a fim de elevar-se e entrar em contato com seres divinos e invisíveis, ou mesmo para se unir à uma divindade. Com isso, se podia adquirir uma forma de vida superior ou alcançar dotes sobrenaturais. Para a psicologia, trata-se de uma retirada da consciência “da circunferência ao centro”, estado no qual se dedica tanta atenção a uma ideia que todo o demais a seu redor parece apagado.

Geralmente, a condição de êxtase se dá por meio de uma preparação e as formas são bem variadas, podendo ser adquirida através de narcóticos (alucinógenos), álcool, música, dança, mas também por técnicas de contemplação e meditação completa ou mesmo por oração. Podemos resumir em dois os fundamentais tipos de êxtase, o “desenfreado e fervente” ou o “sóbrio e contemplativo”. Em ambientes onde se pensa a deus como ser sensório, o êxtase fervente predomina, onde se concebe um deus como invisível, distante, misterioso ou incompreensível, o êxtase sóbrio prevalece.

Um exemplo dessa reação extática do tipo frenética, identificada com delírio, exaltação ou desvario, foi conhecida entre os cultos da Síria e Canaã, está em 1 Reis 18,26-29, onde se flagra os profetas de Baal gritando, dobrando os joelhos, dançando, cortando-se com lanças e entrando em estado de transe. Porém, há ausência de tal fenômeno desde Moisés a Amós, fato muitas vezes despercebido em todas as discussões sobre o tema e que, provavelmente, Isaías o teria denunciado (Isaías 28,7).

Ao êxtase, podem ainda historicamente estar associadas as ideias de premonição, possessão, entusiasmo (entheos), frenesi etc., talvez por isso, visto com desconfiança entre alguns eruditos modernos ao referirem-se aos profetas bíblicos. Mas, tais realidades não parecem ter sido muito comuns entre os semitas. A profecia trata-se de uma experiência de relação e da recepção de uma mensagem que tem forma e conteúdo. O êxtase profético seria, então, a recepção de uma presença e, a profecia, um encontro de uma pessoa.

O êxtase nas demais religiões é unidimensional, não há distinção entre o sujeito da experiência e a experiência mesma. A pessoa se converte em um com o divino. A profecia é um enfrentamento, Deus é Deus, a pessoa é a pessoa, os dois podem encontrar-se, mas nunca fundirem-se. Há companheirismo, mas não fusão.

A inspiração profética pode ser considerada como uma forma de êxtase, porém, não deve ser confundida com mero ato de imaginação, pois está totalmente vinculada ao conceito de mistério, afirmativa contestada por Spinoza ao tentar elaborar (clandestinamente) uma teoria da profecia; assim também Schleiermacher o colocará em dúvida, tornando o conceito de inspiração profética cada vez mais estranho – e em alguns casos, absurdo – ao pensamento moderno. Os profetas foram, aos poucos, sendo reduzidos a grandes mestres da moralidade. Tais correntes vão até mesmo supor tratar o chamado profético como mero artifício literário, produto de decisão livre do profeta, técnica de persuasão ou mesmo confusão mental, devido à sua suposta incapacidade intelectual de administrar a vida interior e seus pensamentos.

O que é a revelação? Toda comunicação original e nova do Universo ao homem é revelação… O que é inspiração? É simplesmente a expressão geral de um sentimento de verdadeira moralidade e liberdade (SCHLEIERMACHER apud HESCHEL, 1973, p. 199-200).

Uma análise cuidadosa deve nos levar a rejeitar que a inspiração profética seja apenas ato de uma receptividade passiva e inconsciente, “o profeta não é um porta-voz, mas uma pessoa; não é um instrumento e sim um sócio, um associado de Deus” (HESCHEL, 1973, p. 70), o profeta vive sua vida e a vida de Deus, experimenta o pathos divino porque ouve a voz de Deus, a sente no coração e compartilha com Israel; o profeta se considerou, às vezes, aquele que encarna o gênio coletivo de seu povo. Portanto, é preciso ter em mente que

Jeremias inculcava em seus ouvintes que Deus não apenas se revelava ao profeta, mas a todo indivíduo: se revelava imediatamente e inequivocamente na consciência moral de cada um…
Reduzida desta maneira a sua essência, despojada de todas as características milagrosas e acompanhamentos sobrenaturais que a mente primitiva havia associado com ela, a inspiração profética parece um assunto realmente simples. Sem dúvida, este ponto de vista sobre a inspiração não era exclusivo de Jeremias, mas também de todos os grandes profetas literários; só que ele, por ser o mais subjetivo e analítico deles, deu-lhe a expressão mais razoada e definitiva. […] Todos se referem à sua inspiração na forma mais natural: Deus lhes falou. O homem sincero de hoje poderia deliberar sobre o mistério inicial da consciência moral do homem, mas não os profetas. Para eles não era nenhum mistério, era um fato a priori, a manifestação de Deus. O dom profético era a fonte da qual derivavam a visão moral e a energia moral…
As grandes verdades e princípios básicos dos quais teriam conhecimento através de sua consciência moral, e que [constituíam] sua revelação de Deus, formavam o centro e a essência de sua profecia (BUTTENWIESER, 1914, p. 150-152 apud HESCHEL, 1973, p. 214).

É assim que o profeta se porta diante da revelação, sente-se um parceiro de Deus e responsável pela salvação do mundo criado. Por isso, ele consegue ir além do êxtase, vai captando a vontade de Deus, essa é a grande diferença dos profetas bíblicos ante as demais figuras de sortílegos e proféticas do período bíblico. Ele experimenta o pathos porque ouve a voz de Deus, a sente no coração e compartilha com Israel; o profeta se considerou, às vezes, aquele que encarna o gênio coletivo de seu povo.

Já que o êxtase é parte da crença, sustentado por diversas culturas e povos primitivos em todo o mundo, e que tal separação da alma do corpo pode estar ligeiramente vinculada ao sono, ao estado hipnótico ou enfermidade, observa Heschel (1973c, p. 41), caberia aqui uma interrogação: de onde veio a evidência que justifica alguma patologia psicológica nos profetas bíblicos? Elenca-se seis estados/ atos emocionais que podem corroborar tal ideia. Vejamos:

1. Jeremias, por causa do mandamento do Senhor, permaneceu solitário porque o desastre havia sido antecipado.
2. Isaías, diante do mandamento (?) do Senhor teve relação sexual com uma profetisa a cujo filho pôs o nome previamente ordenado (Is 8,3). No geral se encontravam nomes estranhos e simbólicos para os filhos de profeta.
3. Quando o espírito lhes oprimia, os profetas experimentavam contorções faciais, sua respiração lhes faltava, e às vezes caíam por terra inconscientes, privados por um tempo da visão e da fala, contorcendo-se com cãibra (Is 21).
4. Isaías caminhou nu e descalço durante três anos como sinal e presságio contra Egito e Etiópia, para que o Rei da Assíria levasse cativos aos egípcios e ao exílio os etíopes… Nus e descalços (Is 20,3-4).
5. Jeremias estava como um homem bêbado, e todos os seus ossos tremiam (Jr 23,9).
6. Jeremias se dividiu em um ego duplo. Implorou a seu Deus que lhe dispensara de falar. Apesar de que não lhe desejava, teve que dizer o que sentia como palavras inspiradas que não provinham dele. Na realidade, experimentou sua própria palavra como um destino horrível. A menos que falasse sofria dores terríveis, sentia sensações queimantes e não podia sustentar de pé ante a tremenda pressão sem aliviar-se por meio da palavra. Jeremias não considerou profeta a um homem a menos que superasse seu estado e falasse a partir desse estado compulsivo e não de “seu próprio coração” (HESCHEL, 1973, p. 176-177).

À primeira vista, as trivialidades estão à tona. Mas não se pode perder de vista que há, na experiência profética, clara conexão entre a ira divina, defende Almeida (2019), e as dores do humano e da criação, efeito evidente do pathos de Deus que os profetas experimentavam. Com isso, não faziam abstrações, muito menos elaboravam silogismos a respeito de Deus, não buscavam provas materiais, antes eram afetados por uma presença, realidade que eles até mesmo fugiam ou ignoravam. Portanto, o profeta sofre as contradições do choque entre a preocupação divina e a vida do povo,

sua linguagem é poética, intuitiva, assistemática, emocional. A aparente histeria do discurso profético, que parece desprovido de racionalidade, é uma forma de dizer que Deus se dirige ao mudo humano na manifestação de um cuidado. A linguagem metafísica está fora da cena literária do profetismo (ALMEIDA, 2019, p. 139).

Heschel (1975, p. 254) definiu a revelação como um êxtase de Deus e a mística como êxtase do ser humano. A teologia clássica preferiu classificar a mística como cognitio Dei experimentalis, lembra-nos Almeida (2019, p. 140), para referir a um determinado testemunho-linguagem que brota de uma experiência radical. Na civilização grega, há uma assertiva onde se defende que as grandes obras literárias surgiram em algum estado de loucura. Já a caracterizaram como estado de receptividade espiritual superior. Seria, então, a Bíblia, produto desse estado mental? Heschel reconhece que muitas vezes o homem percebeu a luz que vem de seu interior bastante pálida, tênue e súbita, levando-o à fascinação e exaltação do sinistro e até à santificação daquilo que é caracterizado pelo “monstruoso”.

Também há registro levantado por Heschel (1973) da relação estabelecida entre profecia e demência, onde se chegou a comparar o temperamento profético à atividade psíquica levada ao automatismo, o que poderia converter o receptor em gênio, psicopático, melancólico ou completamente demente. Tentou-se até explicar a raiz da palavra hebraica nabî (“profeta”) com “loucura”, associando, por exemplo, Amós e Jeremias a epiléticos e dementes, e Ezequiel como psicótico e cataléptico, embora se reconheça que seu significado religioso de nada sofresse em dano paranoico.

Aos métodos psicanalíticos, quis-se enquadrar o êxtase profético à mentalidades anormais, observa Heschel (1973, p. 173-174), tentando desmistificá-lo ao associar aqui uma tendência à possessão extática e à desordens mentais, como fizeram com Oseias, ao lhe sugerirem suposta disposição sensual e repressão sexual, sem levar em conta sua luta contra as obsessões e a pureza de seu pensamento, o que lhe fez encontrar em todas essas situações uma imagem de amor do coração de seu Deus.

Esse tratamento analítico generalizado e moderno do profeta feito “à distância”, para Heschel (1973c), constitui um perigoso trabalho e tende a destruí-lo, porque não permite entender o essencial e criador da consciência profética, o que mais soa como atitude e não explicação: “a única justificativa respeitável para o emprego destes procedimentos seria a de autodefesa: a incapacidade de uma civilização de levar a sério a inspiração profética” (HESCHEL, 1973, p. 176, tradução nossa), contudo, a relevância dos profetas continua provocadora apesar de sua incompreensão.

Nas religiões extáticas, a pessoa, para alcançar o estado de entusiasmo, perde sua identidade, pois busca fundir-se com a divindade. “A autoextinção é o preço da receptividade da mística” (HESCHEL, 1973, p. 101). Já a personalidade dos profetas diante de uma revelação ou teofania, permanece intacta, está intensamente presente, a pessoa não é extinguida e está focada naquilo que percebe, cada um a seu modo: Deus em seu pathos, e o profeta na sua historicidade simpática, com a consciência de uma missão pessoal, diante de um povo particular, como comenta o autor (1973).

Dentro desta perspectiva, a experiência espiritual dos grandes profetas do Antigo Testamento e sua contribuição para nossa reflexão acerca da presença de Deus no mundo, onde o amor e poder de Deus podem se tornar acessíveis à oração dos homens, já que na fé bíblica não é possível enquadrar Deus numa concepção absoluta de transcendência; para Heschel (1973c, p. 115), os profetas conheceram a Deus numa tradição de teofania antes que de um êxtase.

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Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Edson. F. “Abraham J. Heschel e a mística do pathos divino”. Horizonte, Belo Horizonte, v. 17, n. 52, jan./abr. 2019.

BÍBLIA DE JERUSALÉM. 3ª edição. São Paulo: Paulus, 2004.

HESCHEL, Abraham Joshua. Los Profetas; Supervisión de Marshall T. Meyer. Buenos Aires: Paidos, 1973.

LIMA, Narcélio Ferreira de. O mundo interior dos Profetas Bíblicos e a vocação do Homem em A. J. Heschel. 2019.  69 fls. (Monografia) Fortaleza: FCF, 2019.

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