O silêncio é uma busca de Deus

Vivemos em uma sociedade de correrias, barulhos e ativismos. O sistema social e econômico cobra de nós resultados porque ele se mostra cada vez mais competitivo, inovador, tecnológico. Um dos frutos negativos do modernismo é a confusão ou substituição do “ser” pelo “ter” e “fazer”. Aqui, nós valemos o que temos ou a nossa “utilidade”. Esse movimento também pode atingir a esfera espiritual e religiosa, uma vez que a experiência humana é o maior pressuposto para a relação com Deus. Apresentamo-nos a Ele com tudo o que somos, temos e fazemos. No entanto, a via de acesso ao mistério continua a mesma.

Foto: Evaldo Amaro – Mosteiro Cisterciense (Trapista) de Orval, Bélgica, Jul. 2019

 

Vamos agora ao monte Horeb com o profeta Elias, que também foi um homem que fugiu das agitações do seu tempo e procurou refúgio nas cavernas e desertos. Veremos que os desafios não parecerão tão diferentes dos nossos e que a Bíblia pode nos fornecer ajuda na procura de uma espiritualidade inserida em nossa realidade particular contemporânea e por que o silêncio pode se fazer tão decisivo nesse caminho de reencontro com Deus.

Ouviu-se o murmúrio de uma leve brisa. Tendo Elias ouvido isso, cobriu o rosto com o manto, saiu e pôs-se à entrada da caverna. Uma voz disse-lhe: “Que fazes aqui, Elias?”. Ele respondeu: “Consumo-me de zelo pelo Senhor, Deus dos exércitos” (1Rs 19,12-14).

Ouvir é próprio de nosso ser espiritual, religioso e antropológico. É um convite insistente de Deus e condição para experimentá-lo: “Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças” (Dt 6,4s). O pecado, antes de qualquer concepção moral, resume-se na falta de audição à palavra de Deus, desde quando o ser humano preferiu ouvir a uma voz desconhecida (serpente). Daí o termo latino “obediência”: ob (dar) e audire/ audience (escutar), sinônimo de fé na Sagrada Escritura. Abraão é chamado de “pai da fé” porque ouviu a voz de Deus, isto é, a obedeceu.

O silêncio precede à escuta. Um requer o outro. Quando duas ou mais pessoas falam ao mesmo tempo haverá ruído na comunicação. Quando eu silencio e demonstro interesse em ouvir o outro, a comunicação de fato se estabelece. O diálogo é o feedback entre duas ou mais partes, se uma delas não ouve, então a outra falará sozinha, em um verdadeiro monólogo. Assim é também a nossa oração, é preciso deixar espaço para Deus falar e ser ouvido:

Mas o Senhor reside em sua santa morada; silêncio diante dele, ó terra inteira! (Hab 2,20).

O silêncio é poderoso, pois antecede e procede à vida humana: antes de nosso nascimento, quando somos gerados ocultamente, até o grande silêncio ensurdecedor da morte. Na espiritualidade, é mais que ausência de ruído exterior, é contemplação do mistério. Deus também é mistério, e não há outra forma autêntica de se relacionar ou contemplá-lo excluindo o silêncio adorador, que nunca é ausência, mas uma linguagem que nos envolve de teofania (manifestação de Deus) e permite escutar a si mesmo, a Ele e ao Outro, sinal de amadurecimento espiritual e humano.

O primeiro meio de comunicação humano direto com o mundo é nossa boca. Segundo a psicanálise, também se constitui a primeira forma de expressão de prazer humano, através da sucção do seio materno e outros alimentos (fase oral). Balbuciar, chorar, sugar, gritar, mastigar, comer, beber, são as formas mais primitivas e evidentes de satisfação de nosso ego. Por isso, viver o silêncio pode ser uma das mais duras asceses humanas, e pode valer mais que milhares de jejuns e penitências, mas também pode revelar todo o conteúdo da alma de uma pessoa, basta lembrar que os rios mais profundos correm com menor barulho. Silenciar é, portanto, travar luta contra o nosso eu para dar lugar ao “ego” de Deus .

O silêncio é considerado um dos principais valores da espiritualidade monástica. Na Ordem Cartuxa ou na Cisterciense (trapista) quase não se fala e, para se ter contato com o(a) colega, é necessário pedir autorização ao superior/ superiora que dificilmente concede. A exceção é feita às vezes para o(a) ecônomo(a), que tem de resolver questões práticas de administração da comunidade. Grande parte da comunicação se dá através de sinais. O ambiente de silêncio existe, segundo São Bento, para tornar o Deus que é invisível a modo “visível e palpável”, dedicando ele o capítulo 6 de sua Regra a esse valor.

“Eu disse, guardarei os meus caminhos para que não peque pela língua: pus uma guarda à minha boca: emudeci, humilhei-me e calei as coisas boas” (RB 6/ Sl 140,6) e afirmando “falando muito não foges ao pecado” (RB 6). Portanto, não se trata de antipatia dos monges e monjas, mas de uma associação ao reto falar, de evitar o mal pela língua, os excessos do espírito humano, ou seja, de cultivar uma experiência radical de respeito ao outro e de constante autoconhecimento. Em outras palavras, é também questão de saúde mental, uma força que cura.

O filósofo e matemático francês Blaise Pascal (1623-1662) já afirmava no século XVII que “Todos os problemas da humanidade decorrem da incapacidade do homem de se sentar quieto em um quarto sozinho”. Muitos monges e pessoas insatisfeitas com o espírito secular partiram para lugares desertos e solitários para se encontrarem com Deus e a surpresa da maioria foi… Acabaram se encontrando consigo mesmos! Exatamente porque o silêncio ordena nossos pensamentos, faz-nos enxergar melhor o que se passa em nosso interior e exterior, nos põe um espelho diante da alma, apresenta-nos nossas fragilidades, pecados e defeitos. Daí preferimos fugir e proteger o ego desse desconforto.

Deus também silencia: “Procurai o Senhor enquanto ele se deixa encontrar” (Is 55,6). Mas o “silêncio divino”, embora elemento característico de Deus, não o mantém de modo algum alheio aos problemas do ser humano de todos os tempos, é uma atividade operante e combatente e, somente quando ousamos se aproximar, vemos que Deus não é tão austero o quanto parece ser. Ao homem e a mulher que se dedica à prática de sua procura, é-lhe atinado os ouvidos, fazendo-o(a) capaz de captar qualquer suspiro silencioso.

Sem o silêncio é impossível viver a santidade e a maturidade. Acredito que um dos erros mais elementares do mundo nasce da dificuldade de escutarmos uns aos outros, nós nos tornamos cada vez mais insensíveis, antipáticos e egocêntricos, voltamos à confusão da Torre de Babel (Gn 11). Como bem diria Santa Faustina, “Deus não se comunica à alma tagarela que, como zangão na colmeia, zumbe muito, mas não fabrica mel” (Diário, 119). Causa-me também desconforto e estranheza ver que o barulho e dispersão tomam conta até de nossas liturgias, antes, durante e depois das mesmas, fora e dentro do espaço sagrado (as sacristias que o digam!). Esquecemos que o silêncio é parte integrante da celebração:

Também se deve guardar, nos momentos próprios, o silêncio sagrado, como parte da celebração. A natureza deste silêncio depende do momento em que ele é observado no decurso da celebração. Assim, no ato penitencial e a seguir ao convite à oração, o silêncio destina-se ao recolhimento interior; a seguir às leituras ou à homilia, é para uma breve meditação sobre o que se ouviu; depois da Comunhão, favorece a oração interior de louvor e ação de graças. Antes da própria celebração é louvável observar o silêncio na igreja, na sacristia e nos lugares que lhes ficam mais próximos, para que todos se preparem para celebrar devota e dignamente os ritos sagrados (Instrução Geral do Missal Romano, 45).

Admira-me pessoas que se dizem devotíssimas de Nossa Senhora, a exemplo, que são capazes de sacrifícios sobre-humanos, mas não se permitem imitar-lhe essa virtude tão característica de sua alma obediente.

Maria, contudo, conservava cuidadosamente todos esses acontecimentos e os meditava em seu coração (Lc 2,19).

Portanto, essa é minha indicação: questione e fuja de uma experiência espiritual (cristã) que não dê espaço ao silêncio, fuja da superficialidade, imite nosso Mestre, constantemente flagrado nos Evangelhos (sobretudo em Lucas), se retirando e ficando a sós com o Pai, disposto a obedecê-lo. Ele que fez da escuta um ministério, revelando-nos que silêncio é sinônimo de intimidade: “O Senhor Deus deu-me a língua de um discípulo para que eu saiba reconfortar pela palavra o que está abatido” (Is 50,9). E quando for a qualquer lugar sagrado, não procure logo as obras de arte ou o incenso, antes busque o mistério de seu silêncio. Quem foge do “murmúrio” da sensibilidade de Deus, foge de sua presença, não suporta sua divindade, muito menos o rigor do discipulado. Do mesmo modo, fuja de uma espiritualidade intimista, que “monopoliza a graça”, e que trata Deus como “best friend”, pois o próprio Jesus o revela, mas não desvela, Deus continua profundo e transcendente.

Sabemos que o exercício desse silêncio religioso pode ser um prato cheio para pessoas introvertidas e antissociais, mas não é essa a proposta. Se aproximar da bondade de Deus significa também ser misericordioso para com os demais. Também tal realidade não se identifica com o ideal dos filósofos estoicos, que prezavam uma vida livre de perturbações, nem com a cultura “zen”, que almejam o bem-estar pelo esforço da meditação. O silêncio é um estilo de vida que se repercute no relacionamento com Deus e nas pequenas coisas: a gentileza em se direcionar aos outros, o modo como se fecha uma porta, como se pisa o chão, como se atende um telefone, o cuidado com as palavras etc.

O Papa João Paulo II, uma vez falando aos consagrados e consagradas, resolveu alargar o tema a todas as pessoas porque enxergava nisso uma grandeza útil não apenas a pessoas religiosas: “A vocação à santidade só pode ser acolhida e cultivada no silêncio da adoração na presença da transcendência infinita de Deus: Devemos confessar que todos precisamos deste silêncio repleto de presença adoradora” (João Paulo II, VC, n. 38). Ou como bem observou a “pequenina de Lisieux”: “O silêncio é a doce linguagem dos Anjos e de todos os eleitos” (Santa Teresinha).

A palavra “contemplação” vem de templo, que é o lugar da adoração. Uma alma contemplativa é uma alma que escuta e procura a união com Deus. Não há adoração sem silêncio, pois ele demonstra nossa reverência e temor. O silêncio é, definitivamente, uma busca de Deus: “Uma coisa peço ao Senhor, a coisa que procuro: é habitar na casa do Senhor para gozar a doçura do Senhor e meditar no seu Templo” (Sl 27,4). Foi Jesus quem nos ensinou a rezar ao Pai em segredo (Mt 6,6).

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *