Que a saúde se difunda sobre a terra

Diante do atual cenário pandêmico, onde o setor sanitário está altamente em evidência, aqui no Brasil e no mundo, infelizmente, circulam nos meios de comunicação e redes sociais inúmeras fake news sobre o assunto. Mas nem as pandemias ou notícias falsas são atuais. Basta dar uma rápida olhada no velho Google e procurar uns sites confiáveis que logo saberemos, a exemplo, sobre a “gripe espanhola”, que ceifou cerca de 50 milhões de vidas entre 1918 e 1920 e que ficou conhecida como a “mãe das pandemias”. Mas também uma outra falácia é achar que fé e ciência são inimigas. Sobre esse assunto, basta se inteirar sobre a lista de grandes nomes da ciência que nunca negaram ou esconderam sua fé.

Para não alongar e tornar o assunto enfadonho, não precisamos ir tão longe. Basta pegar uma bíblia. São vários os trechos que afirmam a importância do médico e do saber medicinal, o que também são considerados dons de Deus e desdobramento da sabedoria divina que o Criador compartilhou apenas com o ser humano. A imagem e semelhança que o homem e a mulher receberam de Deus englobam outras propriedades comuns como razão, liberdade e vontade. Esse conhecimento possibilita nosso crescimento e autonomia perante a natureza, embora não a dominemos totalmente.

Se olharmos atentamente os textos bíblicos referentes ao tema, constataremos que a doença é sempre ligada à nossa condição de pecado. No entanto, Deus promete a seu povo retirar a doença de seu convívio se este lhe for fiel (Ex 23,25). O coração disposto é remédio (Pv 14,30; 17,22). A saúde que Deus concede é para todas as áreas de nosso ser (Pv 4,20-22). Bonita é a promessa de Deus para aquela pessoa que pensa no pobre e no indigente: “Iahweh o sustenta no seu leito de dor, tu afofas a cama em que ele definha” (Sl 41,4). O próprio apóstolo Paulo não parava de pregar o evangelho, mesmo doente e, embora nessa condição, foi tratado pelos gálatas como “um anjo de Deus, como o próprio Cristo Jesus” (Gl 4,13-14).

Digna de citação é a perícope de Eclesiástico  38, que nos exorta a confiar na ciência humana:

“(1) Honra o médico por causa da necessidade, pois foi o Altíssimo quem o criou. (2) Toda a medicina provém de Deus, e ele recebe presentes do rei: (3) a ciência do médico o eleva em honra; ele é admirado na presença dos grandes. (4) O Senhor fez a terra produzir os medicamentos: o homem sensato não os despreza. (5) Uma espécie de madeira não adoçou o amargor da água? [Ex 15,23; Nm 33,8] Essa virtude chegou ao conhecimento dos homens. (6) O Altíssimo deu-lhes a ciência da medicina para ser honrado em suas maravilhas; (7) e dela se serve para acalmar as dores e curá-las; o farmacêutico faz misturas agradáveis, compõe unguentos úteis à saúde, e seu trabalho não terminará, (8) até que a paz divina se estenda sobre a face da terra. (9) Meu filho, se estiveres doente não te descuides de ti, mas ora ao Senhor, que te curará. (10) Afasta-te do pecado, reergue as mãos e purifica teu coração de todo o pecado. (11) Oferece um incenso suave e uma lembrança de flor de farinha; faze a oblação de uma vítima gorda. (12) Em seguida dá lugar ao médico, pois ele foi criado por Deus; que ele não te deixe, pois sua arte te é necessária. (13) Virá um tempo em que cairás nas mãos deles. (14). E eles mesmos rogarão ao Senhor que mande por meio deles o alívio e a saúde (ao doente) segundo a finalidade de sua vida. (15) Aquele que peca na presença daquele que o fez cairá nas mãos do médico” (Edição Ave Maria, o negrito é nosso).

O próprio Jesus aparece nos Evangelhos como um taumaturgo (“milagreiro”) ou médico, o que também representa a vitória de Deus sobre a maldade e toda forma de opressão no mundo. Ele se compadece das pessoas, ainda mais em um tempo em que não havia políticas públicas de saúde: “não são os que têm saúde que precisam de médico, e sim os doentes” (Mt 9,12). Jesus é chamado de “Filho de Davi”, isto é, o novo Salomão, não apenas por conta de sua sabedoria, mas também pelo seu poder curador, pois havia uma tradição que transmitia a imagem do rei Salomão como sábio e médico. O evangelista Lucas também é apontado como médico (Cl 4,14), é por esse motivo que, se prestarmos bastante atenção, os detalhes de seu evangelho trazem grande interesse pelas curas de Jesus e detalhes referentes ao estado de alma dos personagens.

O que se dispunha na época é o que hoje poderíamos talvez chamar de “medicina alternativa” ou “fitoterapia”: O óleo (unguento), vinho e algumas ervas já eram utilizados como remédios (1Tm 5,23). Mas nada substituía o poder da oração.

Sofre alguém dentre vós um contratempo? Recorra à oração. Está alguém alegre? Cante. Alguém dentre vós está doente? Mande chamar os presbíteros da Igreja para que orem sobre ele, ungindo-o com óleo em nome do Senhor. A oração da fé salvará o doente e o Senhor o porá de pé; e se tiver cometido pecados, estes lhe serão perdoados. Confessai, pois, uns aos outros, vossos pecados e orai uns pelos outros, para que sejais curados. A oração fervorosa do justo tem grande poder (Tg 5,13-16).

O trecho acima deixa transparecer o poder curativo dos sinais realizados pelos apóstolos e discípulos em nome de Jesus, em especial daqueles que são denominados “sacramentos de cura”: confissão e unção dos enfermos, o que foi defendido já no Concílio de Trento (séc. XVI). Mas na verdade, toda ação sagrada tem poder curativo se administrado e recebido com o dom da fé, o que não pode ser confundido com ação mágica ou superstição.

O povo de Deus intercede para que seus próximos tenham vida plena e saúde (3 Jo 1,2). O temor do Senhor concede não apenas saúde espiritual, mas também física, dá até vigor aos ossos (Pv 3,7-8). Hoje a própria ciência não nega que uma espiritualidade sincera pode ser fator vinculador de saúde espiritual, física e mental. Portanto, a obediência à voz do Senhor sempre foi garantia de saúde e proteção divinas (Ex 15,26). Jesus repetia os sinais de Moisés e dos grandes profetas de seu povo, e foi além: “era nossos sofrimentos que ele levava sobre si, nossas dores que ele carregava” (Is 53,4). A missão de Jesus no mundo não apenas atualizava as antigas profecias, mas as encarnava na vida dos fiéis:

Não o sabes? Não ouviste dizer? Iahweh é Deus eterno, criador das extremidades da terra. Ele não se cansa nem se fatiga, sua inteligência é insondável. Ele dá força ao cansado, que prodigaliza vigor ao enfraquecido. Mesmo os jovens se cansam e se esgotam; até os moços vivem a tropeçar, mas o que põem a sua esperança em Iahweh renovam as suas forças, abrem asas como as águias, correm e não se esgotam, caminham e não cansam (Is 40,27-31).

Deus sendo um pai de amor, jamais se compraz com o sofrimento e morte de seus(as) filhos(as). Nem todas as situações adversas no mundo são frutos de sua vontade. O ser humano também tem que se responsabilizar pelas consequências de suas escolhas. Sofrer como castigo é responsabilidade dos homens  e mulheres, mas sofrer como redenção e reparação é responsabilidade de Deus. Deus jamais permitiria uma desventura ao ser humano e ao mundo se não tivesse intenção e poder para fornecer-nos um bem infinitamente maior, ou seja, para nos fazer mais fortes e humildes.

Isso é muito evidente em Jesus que, embora sendo Deus e médico dos corpos e das almas, se compadece até hoje de nossa situação e nos trata com total empatia e solidariedade: “estive doente” (Mt 25,36), porque preferiu se assemelhar a nós em tudo, excetuando o pecado (Fl 2,7). Agora, nem a doença, pecado ou morte podem impedir o agir de Deus e de seu Espírito no mundo. Ele continua vivo, ressuscitado e ressuscitante, fazendo acontecer sua obra naqueles que acreditam.

 

 

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