Santa Praxedes e o protagonismo feminino cristão

Onde estava e está a mulher?

A história humana mostrou, desde seus tempos mais remotos, uma clara e distinta concepção na relação sociocultural entre homens e mulheres, enaltecendo a figura do masculino de forma desproporcional. Na religião não foi diferente, pois a posição da mulher sempre esteve cercada de fatores, visões e posturas complexas. Na perspectiva da professora Dra. Carolina Lemos (2013), tal referência pode ser justificada pelo paradoxal entrelaçamento do poder religioso com a realidade do patriarcado, com atenção especial ao cristianismo, por se tratar de sua ampla proporção e repercussão em número e ideias.

Como mostrado em Geertz (1989), a religião é fortemente caracterizada por um sistema simbólico estruturado e estruturante, que evidencia o ethos de um povo, isto é, o conjunto de seus costumes, hábitos, valores, ideias e crenças. Nesse sentido, não se pode esquecer que, no judaísmo e cristianismo, a fé cresceu entrelaçada à cultura patriarcal, tanto pela sua organização interna quanto pelas características de sua teologia, o que se constitui uma dimensão marcante em sua história, formulando uma ideia da localização do masculino e feminino no âmbito social e cultural, o que também podemos chamar “relações de gênero”.

Um dos maiores problemas históricos do fenômeno patriarcalista se dá quando ele toma para si forma ilimitada, arbitrária e muitas vezes antiética nas relações de poder e autoridade. Neste estilo de organização social, as mulheres são vistas de forma subordinada aos homens, assim como o são os mais novos em relação aos mais velhos, o que tem sido um limite para a sexualidade, autonomia e papel social das mulheres. É bem notório que tal diferença sociocultural de gênero não deve ser vista como norma natural, mas trata-se de uma construção social, de uma realidade secundária condensada por fatores complexos. Isto implica dizer que não se deve justificá-la com premissas anatômicas ou biológicas, mas identificá-la às implicações entre gênero e poder, como se pode ver a seguir.

Nas heranças gregas e bíblicas, a imagem da mulher oscila entre profundos elogios e repulsas, admiração ou hostilidade, basta lembrarmos da Pandora grega e da Eva judaica. Assim também o foi na literatura, sendo já chamada de “porta do Diabo” por Tertuliano em De cultu feminarum (“O adorno das mulheres”) ou “autora da falta para o homem”, por Ambrósio de Milão (PL 14, col. 303). Mas o contraste vem, sobretudo a partir do século XI, onde os mesmos autores que glorificavam as virtudes de Maria e lhe rendiam altas confissões e cultos, alertavam do perigo em se aproximar das mulheres.

Lembramos que tais concepções vão na contramão de uma teologia original, pois na formulação do Gênesis, a palavra utilizada para a criação da mulher a partir do Homem é tselá (צֵּלָ֛ע= metade, banda, lado), equivocadamente traduzida em nossas bíblias por “costela” em Gênesis 2,22, até porque o termo hebraico para “homem” (אִישׁ = ‘ish) quase em nada difere da escrita para “mulher” (אִשָּׁה = ‘ishah). Esse sagrado jogo de palavras revela alta dignidade e igualdade ontológica perante o Criador, confirmada pelas palavras do Homem: “Esta, sim, é osso de meus ossos, e carne de minha carne! Ela será chamada ‘mulher’, porque foi tirada do homem!”, reforçando-nos o convite para restabeleccer, embora tardiamente, o referido problema.

Nem a proclamação dos quatro dogmas marianos, que revelam a ação sobrenatural de Deus na vida de Maria, ajudaram a amenizar a situação da mulher, a qual Tomás de Aquino, levado pelo aristotelismo, chamaria de “macho bastardo”, como se a única virtude feminina fosse reduzida a seu papel procriador, mostrando assim, grande dependência do homem. Mas na vida do cristianismo, é incontestável a presença e protagonismo da mulher, mesmo que não exaltado. Muitas foram as figuras de liderança que agiram com passos largos para a preservação da fé e proclamação do Evangelho. Apresentamos agora uma figura ainda pouco conhecida e discreta, mas que teve papel decisivo na história da jovem religião cristã.

 

O apostolado de Santa Praxedes: mulher, cristã, leiga e mártir.

A professora Ivoni Reimer (2015), em seu artigo “Santa Praxede: memórias e visualidades de uma líder eclesial da Roma antiga”, propôs-se a fazer uma leitura historiográfica e (quase) arqueológica a partir de dados bíblicos, fragmentos históricos e artísticos sobre uma figura icônica, pertinente, embora também esquecida, da Roma Antiga. Trata-se de Santa Praxedes (ou Prassede, Praxede) mulher, leiga e cristã do primeiro século de nossa era, e sua liderança diaconal, missionária e apostólica naquela comunidade local, verificando em seu testemunho a possibilidade de uma construção heterotópica, isto é, não homogênea, que ajude a iluminar o significado e história de nossas mulheres no âmbito religioso e social.

Quadro “Santa Prassede”, do holandês Johannes Vermeer (1655).

Faz-se mister o leitor atentar-se das dificuldades de reconstruir a biografia de uma figura com quase dois milênios de distância de nosso tempo e da escassez de dados documentais, o que fez Reimer apelar para a literatura hagiográfica construída nos séculos V e VIII, também aos esforços do Papa Pascoal I em ressignificá-la (séc. IX) e a outros comentários teológicos, históricos e artísticos, merecendo especial atenção as visualidades do interior da Basílica romana de Santa Praxedes, como a autora o fez pessoalmente.

De início, tal empreendimento deixou transparecer dois grandes contextos históricos que contornam a reconstrução da figura de Santa Praxedes e sua basílica, isto é, as lutas e conflitos religiosos e políticos internos e externos: iconoclastia e islamismo. Ao mesmo tempo em que, inevitavelmente, evidencia o papel das mulheres e seu ministério e espiritualidade na Igreja e na sociedade. A pouca bibliografia e o desconhecimento da figura de Praxedes, assim como a de tantas outras mulheres que, embora possam ser mencionadas ao lado de grandes personalidades, pode apontar para a pouca importância da figura feminina e de uma cultura fortemente marcada pelo patriarcalismo, mesmo no interior da realidade cristã.

No tocante aos textos antigos e paulinos, sobretudo em Romanos 16,1-16, é incontestável a importância e presença das mulheres na liderança cristã, como a da diaconisa Febe de Corinto, Priscila, Trifena, Trifosa, Pérside, Maria, Júlia e a apóstola Júnia, ambas mencionadas e honradas pelo apóstolo Paulo, não menos dignas que os distintos homens que desempenhavam altas funções comunitárias, pois não se tratava de subordinação, mas de igualdade e espírito colegial no serviço a Deus e ao próximo. A recomendação e reconhecimento dessas mulheres por Paulo são nítidos, como no caso de Febe: “para que a recebais no Senhor de modo digno, como convém a santos” (Rm 16,2), de Priscila (e Áquila): “meus colaboradores em Cristo” (v. 3), de Maria: “que muito fez por vós” (6), de Júnia (e Andrônico): “meus parentes e companheiros de prisão, apóstolos exímios” (v. 7), Trifena, Trifosa e Pérside: “que se afadigaram no Senhor” (v. 12.), e Júlia, reconhecida como santa, bem como a todas e todos que estão com ela (v. 15).

No desenvolver de sua pesquisa e, na colaboração em reconstruir a história de Santa Praxedes, Reimer lembra-nos da possibilidade de um parentesco desta com Priscila, citada em Romanos 16,3. Isso remonta à uma antiga tradição do século V descrita em Vita Praxedis, já que sua basílica era uma das vinculadas à Catacumba de Santa Priscila, apontada como avó de Praxedes e mãe de Pudencio, este último pai de Praxedes, Pudenciana, Novato e Timóteo. Priscila é mencionada como esposa do senador romano Quintus Cornelius Pudens, que foram uns dos primeiros convertidos por São Pedro apóstolo, o que já vincularia e confirmaria Praxedes como figura de importância capital para a tensa fase embrionária da Igreja durante as perseguições do Imperador Nero (54-68 d.C.).

Outra citação importante que faz associação à descendência de Praxedes está na carta pastoral de Timóteo, onde Pudente (ou “Prudente”), o bispo Lino e Cláudia são igualmente mencionados (2Tm 4,21). Também não se pode esquecer que, à época romana antiga, as igrejas, antes chamadas de Titulus, geralmente recebiam por padroeiro(a) e nome o(a) doador(a) do prédio, tanto pelo fato de ceder o espaço como pelo reconhecimento de suas virtudes, diaconia e serviço pastoral e social para com os doentes, pobres, perseguidos e peregrinos.

Numa época de grande perseguição e martírio, Praxedes e suas irmãs eram encarregadas de providenciar digna sepultura a seus irmãos(ãs) cristãos(ãs), que tinham suas vidas ceifadas ante às formas mais cruéis adotadas pelas autoridades romanas, o que também lhe custou duras perseguições, torturas e até mesmo a morte. Comumente, a santa é representada agachada, recolhendo o sangue de seus irmãos e correligionários em um recipiente (foto acima). Tais fatos biográficos acabaram por colaborar com a preservação da memória desta leiga cristã, já que o martírio sempre foi considerado como alto louvor e forma privilegiada de se alcançar a santidade. Além da prática cristã de exéquias, sobretudo na era dos mártires, era muito comum os próprios leigos e leigas prestarem outros serviços como administração de batismo, celebração da palavra e diaconia aos mais simples e necessitados. Por isso, a jovem Praxedes já gozava certa aura de santidade.

Outro fator preponderante para a perpetuação da memória de Praxedes, como a de tantos outros santos e santas foi a forte veneração que a Igreja nascente dedicava aos mártires, em especial a visita a seus túmulos, que ocorria com maior frequência no aniversário de morte destes, também considerada como uma nova vida em Cristo, daí a tradição que se emprega de localizar a memória litúrgica dos(as) santos(as) na data de sua páscoa eterna. Essa atividade foi alcançando, a partir do Império de Constantino, um cunho não simplesmente devocional, mas também político-esclesiástico, fomentando um andiriviene (“vai e vem”) de peregrinos, marcando em todo o Império uma “rota litúrgica” que perdurou até o século IX.

Depois disso, o pontificado de Pascoal I (817-824), presenciando a ameaça do avanço do Islamismo e da iconoclastia, empreendeu um importante projeto de reforma litúrgica e estrutural desses cultos, recuperando relíquias, reconstruindo igrejas antigas e seus elementos históricos. Decidiu-se, então, transladar os restos mortais dos(as) santos(as) às basílicas. Neste projeto, a basílica de Santa Praxedes, uma das três mais antigas de Roma, foi contemplada.

Na reconstrução desta Basílica, onde se propôs um estilo de “retorno ao antigo”, as visualidades de Praxedes comumente são representadas em contexto de esperança, isso é notório pelos aspectos bíblico-teológicos do Apocalipse. Ela é situada ao lado de Jesus e Maria, o que lhe confere dignidade e autoridade. É sempre colocada ao lado de outras mulheres, sua coroa ou palmeira na mão aponta para o martírio e o prêmio da vida eterna.

Um detalhe curioso está na capela lateral de Santo Zenão, onde Maria aparece juntamente com Santa Praxedes, Santa Pudenciana e Teodora (mãe do Papa Pascoal I), esta última que na descrição recebe o título de “epíscopa”. Nossa Senhora aparece em todos os altares, mas um detalhe “paradoxal” está na ausência do Menino Jesus em seus braços, o que para a iconografia da época era inimaginável ou raro, o que pode representar a companhia de Maria ao lados das mulheres, símbolo de fé, liderança e espiritualidade.

Epíscopa Teodora, Praxedes, a Virgem Maria e Pudenciana (Altar de Santo Zenão) – Foto: Wikipedia (modificado pelo autor)

Considerações

É interessante notar que, na Igreja nascente, o protagonismo feminino já era uma realidade desde a presença das discípulas de Jesus, assim como descrito no Evangelho de Lucas (cf. Lc 8,1-3), dentre elas, figuras distintas como a de Joana, mulher de Cuza, o procurador de Herodes, ou de inúmeras figuras anônimas que eram curadas ou simplesmente atraídas por outras experiências de fé que as motivaram ao seguimento de seu Mestre. Em resumo, acreditamos que o papel das mulheres no discipulado encontra seu lugar na mais alta honra e distinção e, repensar esse tema, não é simples mea culpa histórica, mas questão de honestidade intelectual, moral, religiosa, social e cultural.

A mulher não está ausente nas dimensões histórica, social e religiosa, pelo contrário, tem sido muitas vezes poderoso sustentáculo para a preservação e perpetuação da fé nas mais diversas épocas e culturas, embora seu rosto tenha permanecido discreto por séculos. O espírito criador de Deus, que pairava nas águas do caos primitivo, é ilustrado por uma palavra semita que só existe no feminino: a ruach (רוח), que significa sopro vital, hálito, vento, respiração. O próprio Deus já foi representado por Isaías com feições femininas e maternas (Is 49,15). Inúmeras são as lideranças que tiveram papel decisivo na história sagrada: Sara, Miriam, Raab, Débora, Rute, Ana, Ester, Nossa Senhora, as já descritas no capítulo 16 de Romanos e muitas outras anônimas que dão sua vida em prol de uma humanidade mais justa, fraterna e amorosa.

 

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Referências Bibliográficas

BÍBLIA DE JERUSALÉM. 3ª edição; São Paulo: Paulus, 2004.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, p. 66 – 106.

LEMOS, Carolina Teles. “Religião e Patriarcado: elementos estruturantes das concepções e das relações de gênero”, Revista Caminhos, Goiânia, v. 11, n. 2, p. 201-217, jul./dez. 2013.

REIMER RICHTER, Ivoni. “Santa Praxede: memórias e visualidades de uma líder eclesial na Roma antiga”, Revista Horizonte, Belo Horizonte, v. 13, n. 39, p. 1480-1509, jul./set. 2015.

 

 

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